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LUÍS NASSIF
Músicos da noite
Escrevo a coluna ainda acachapado pelo som que ouvi
no Baretto, do trio Música Ligeira
e da cantora Márcia Lopes. O trio
é fantástico, com um repertório
internacional e três músicos ecléticos, indo do violoncelo ao bandolim e à guitarra. A cantora é a
voz mais linda que já ouvi no
Brasil cantando repertório norte-americano, desde que minha
amiga Madalena de Paula se foi.
Uma cantora à altura de Doris
Day.
Daí me lembrei dos sons da minha vida, daqueles músicos da
noite, canários ou instrumentistas que passam pelo mundo construindo seu universo sonoro,
criando momentos encantados
que se perpetuam na memória de
poucos.
Foi o caso do pianista João Viviani, com seu cigarrinho em cima do tampo do piano, a maneira de tratar a todos pelo diminutivo, como era praxe nos tempos
da bossa nova. Quantas noites
atravessamos no Bachianinha
ouvindo o piano do João, a voz
rouca da Iara e o timbre seresteiro do Laércio? Depois João se mudou para Ribeirão Preto, fez nome no restaurante do Bosque e algumas semanas atrás se foi sem
mandar aviso prévio. A Iara e o
Laércio já haviam se mandado
fazia tempo.
Nos botecos da zona tinha o
Cláudio, negão de Jundiaí, que
andava de muleta e tinha braços
tão longos que quase alcançavam
o chão. Quando se punha a tocar
e a cantar, o violão parecia uma
bateria de escola de samba. Ainda me lembro do dia em que
anunciaram sua morte e juntamos todos os boêmios, contritos,
em uma missa na Matriz. Momento inesquecível, que não será
único porque certamente se repetirá no dia em que Cláudio efetivamente morrer. Naquela época,
a morte foi um álibi para fugir do
assédio de uma mocinha da tia
Jovita, que ele enganara com promessas vãs.
Os sons da adolescência não
eram tão refinados quanto os que
vim a conhecer, depois, em São
Paulo. Mas eram inesquecíveis.
Ainda hoje a turma se recorda do
Dimas, o nordestino que era operário da Delaroli, cantava que
nem Orlando Silva e que nos
acompanhava nas serenatas, terminando a noite com um indefectível "deixa-me sofrer / que eu
mereço", que o fazia recordar o
ato de fraqueza de ter tido um caso com a própria cunhada.
Depois, em São Paulo, vieram
os sons da Galeria Metrópole, a
flauta de Manezinho, o bandolim
do Evandro, o Adauto Santos e o
Luiz Carlos Paraná. Eram ótimos, mas muito acima das nossas
pretensões.
Nossa noite se encheu quando
conhecemos o bar do Alemão, e as
figuras reverenciais do dono Dagô do Pandeiro e do Nelsinho Risada, do cavaquinho. O bar está
de cara nova, foi adquirido por
Eduardo Gudin e pelo Flavinho,
companheiros daqueles tempos.
No fim de noite, o Alemão recebia os músicos da noite, tanto os
paulistanos quanto os que vinham do Rio. Foi lá que conheci
os clássicos Cartola e Nelson Cavaquinho. E todos os anônimos
veteranos e os jovens que se iniciavam na música.
Foi lá que o Serginho Leite começou com o violão de sete cordas, Arismar do Espírito Santo
treinou seus primeiros sons do
contrabaixo, Vicente Barreto
mostrou suas composições com
Vinicius, Heraldo nos apresentou
as peças de Garoto, Baiano e Negão Almeida desfilaram seus
sambas e a turma da Cesp dividiu
conosco seus sons, das modas de
viola do Tietê de Riolando ao
samba de breque de Marchezan.
E o Pelão só olhando com ar invocado e pegando inspiração para
seus LPs.
Foram tantos os lugares, tantas
as vozes que às vezes até me esqueço. Por onde andará Zezé, a
prostituta da baixada do Glicério
que nos encantava cantando Lupicínio nas noites da rua Avanhandava, no bar do prédio em
que moravam o Zé Grandão e o
Dom e Ravel em início de carreira?
Dessas vozes, poucas me encantaram tanto quanto a de dona
Ica, a mãe dos irmãos Assad, com
quem partilhei algumas noitadas
em São João da Boa Vista, ao lado do marido, seu Jorge. A família
está em excursão pelos Estados
Unidos. E o Sérgio manda um e-mail com a crítica do "Los Angeles Times", chamando dona Ica
de "a Billie Holiday brasileira".
Foi um tesouro, do imenso acervo de tesouros musicais brasileiros, que o mundo ainda há de reverenciar.
E-mail -
Luisnassif@uol.com.br
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