São Paulo, domingo, 18 de abril de 2004

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LUÍS NASSIF

Músicos da noite

Escrevo a coluna ainda acachapado pelo som que ouvi no Baretto, do trio Música Ligeira e da cantora Márcia Lopes. O trio é fantástico, com um repertório internacional e três músicos ecléticos, indo do violoncelo ao bandolim e à guitarra. A cantora é a voz mais linda que já ouvi no Brasil cantando repertório norte-americano, desde que minha amiga Madalena de Paula se foi. Uma cantora à altura de Doris Day.
Daí me lembrei dos sons da minha vida, daqueles músicos da noite, canários ou instrumentistas que passam pelo mundo construindo seu universo sonoro, criando momentos encantados que se perpetuam na memória de poucos.
Foi o caso do pianista João Viviani, com seu cigarrinho em cima do tampo do piano, a maneira de tratar a todos pelo diminutivo, como era praxe nos tempos da bossa nova. Quantas noites atravessamos no Bachianinha ouvindo o piano do João, a voz rouca da Iara e o timbre seresteiro do Laércio? Depois João se mudou para Ribeirão Preto, fez nome no restaurante do Bosque e algumas semanas atrás se foi sem mandar aviso prévio. A Iara e o Laércio já haviam se mandado fazia tempo.
Nos botecos da zona tinha o Cláudio, negão de Jundiaí, que andava de muleta e tinha braços tão longos que quase alcançavam o chão. Quando se punha a tocar e a cantar, o violão parecia uma bateria de escola de samba. Ainda me lembro do dia em que anunciaram sua morte e juntamos todos os boêmios, contritos, em uma missa na Matriz. Momento inesquecível, que não será único porque certamente se repetirá no dia em que Cláudio efetivamente morrer. Naquela época, a morte foi um álibi para fugir do assédio de uma mocinha da tia Jovita, que ele enganara com promessas vãs.
Os sons da adolescência não eram tão refinados quanto os que vim a conhecer, depois, em São Paulo. Mas eram inesquecíveis. Ainda hoje a turma se recorda do Dimas, o nordestino que era operário da Delaroli, cantava que nem Orlando Silva e que nos acompanhava nas serenatas, terminando a noite com um indefectível "deixa-me sofrer / que eu mereço", que o fazia recordar o ato de fraqueza de ter tido um caso com a própria cunhada.
Depois, em São Paulo, vieram os sons da Galeria Metrópole, a flauta de Manezinho, o bandolim do Evandro, o Adauto Santos e o Luiz Carlos Paraná. Eram ótimos, mas muito acima das nossas pretensões.
Nossa noite se encheu quando conhecemos o bar do Alemão, e as figuras reverenciais do dono Dagô do Pandeiro e do Nelsinho Risada, do cavaquinho. O bar está de cara nova, foi adquirido por Eduardo Gudin e pelo Flavinho, companheiros daqueles tempos.
No fim de noite, o Alemão recebia os músicos da noite, tanto os paulistanos quanto os que vinham do Rio. Foi lá que conheci os clássicos Cartola e Nelson Cavaquinho. E todos os anônimos veteranos e os jovens que se iniciavam na música.
Foi lá que o Serginho Leite começou com o violão de sete cordas, Arismar do Espírito Santo treinou seus primeiros sons do contrabaixo, Vicente Barreto mostrou suas composições com Vinicius, Heraldo nos apresentou as peças de Garoto, Baiano e Negão Almeida desfilaram seus sambas e a turma da Cesp dividiu conosco seus sons, das modas de viola do Tietê de Riolando ao samba de breque de Marchezan. E o Pelão só olhando com ar invocado e pegando inspiração para seus LPs.
Foram tantos os lugares, tantas as vozes que às vezes até me esqueço. Por onde andará Zezé, a prostituta da baixada do Glicério que nos encantava cantando Lupicínio nas noites da rua Avanhandava, no bar do prédio em que moravam o Zé Grandão e o Dom e Ravel em início de carreira?
Dessas vozes, poucas me encantaram tanto quanto a de dona Ica, a mãe dos irmãos Assad, com quem partilhei algumas noitadas em São João da Boa Vista, ao lado do marido, seu Jorge. A família está em excursão pelos Estados Unidos. E o Sérgio manda um e-mail com a crítica do "Los Angeles Times", chamando dona Ica de "a Billie Holiday brasileira".
Foi um tesouro, do imenso acervo de tesouros musicais brasileiros, que o mundo ainda há de reverenciar.

E-mail -
Luisnassif@uol.com.br


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