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EM TRANSE
Ex-diretor do FMI aponta irresponsabilidade fiscal no primeiro mandato de FHC e isenta candidatos de culpa pela crise
Inflação atenua dívida de FHC, diz Mussa
MARCIO AITH
DE WASHINGTON
A inflação, inimiga número um
do Plano Real, pode transformar-se na solução mais viável para
parcela da dívida pública brasileira. Pelo menos na opinião de Michael Mussa, ex-diretor do Departamento de Pesquisa do FMI
(Fundo Monetário Internacional)
e atual membro do IIE (Instituto
de Economia Internacional), um
dos principais centros de pesquisa de Washington.
Mussa diferencia a crise brasileira da argentina -"os perfis das
duas são diferentes"- e conclui
que a saída mais atraente para
suavizar o passivo em reais do governo é deixar os preços subirem
para um patamar próximo ao dos
juros. "Haveria uma corrosão
dessa parcela da dívida sem que
haja uma reestruturação formal."
Segundo o economista, a dívida
pública brasileira é produto do
"exercício máximo de irresponsabilidade fiscal" do governo Fernando Henrique Cardoso entre
1994 e 1998. Os atuais candidatos
não poderiam ser responsabilizados pela tensão nos mercados.
"O desempenho fiscal do primeiro governo [Fernando Henrique] Cardoso foi péssimo. Teve
déficits enormes e queimou uma
montanha de receitas da privatização, talvez US$ 40 bilhões ou
US$ 50 bilhões. Cardoso garantiu
um segundo mandato à custa da
elevação da dívida do setor público e da queima de receitas da privatização." Mussa falou à Folha
na sede do IIE.
Folha - Após o anúncio do empréstimo do FMI, o real caiu mais e
o risco Brasil manteve-se num patamar elevado. O acordo fracassou? É cedo para julgar?
Michael Mussa - Os mercados
concluíram que os fundamentos
do problema não mudaram. O
superávit fiscal primário tem sido
de 3,25% a 3,75% do PIB desde
1999 e, apesar disso, a relação dívida/PIB continuou a crescer. Nesse
aspecto, o pacote trouxe problemas. Ele serviu como uma declaração do governo atual de que o
superávit de 3,75% é o maior esforço fiscal que pode ser feito agora e no futuro. Há um reconhecimento de que a relação dívida/
PIB começaria a se estabilizar ou
até a cair se os juros reais sobre a
dívida forem de 7%, 8% ou 9%,
mesmo se a economia tiver um
crescimento moderado. Mas com
juros reais de 10% ou mais fica
virtualmente impossível elevar
esse superávit a um nível suficiente para estabilizar essa relação.
Folha - O sr. esteve numa posição
de destaque no FMI na última década, quando as dívidas pública e privada brasileira cresceram muito...
Mussa - Sou muito crítico em relação aos cinco primeiros anos do
governo FHC e do ministro Pedro
Malan (Fazenda). Foram um
exercício máximo de irresponsabilidade fiscal. Mas desde 1999
eles têm sido cuidadosos. Comprometeram-se apenas com metas fiscais que puderam cumprir.
E foram responsáveis em cumprir
as promessas que fizeram.
Folha - Pode-se, então, dizer que
foram cinco anos irresponsáveis
contra três anos de maturidade?
Mussa - Pode-se discutir se as
metas de superávit primário nos
últimos três anos foram suficientes para compensar os anos anteriores ou não. Mas, pelo menos,
não foram metas que eles prometeram e não cumpriram. Acho
que, na última negociação com o
FMI, o governo disse que não havia condições de cumprir um superávit acima de 3,75% e o Fundo
aceitou, considerando que o presente governo só tem mais alguns
meses de duração.
Folha - O sr. acredita que a raiz da
atual turbulência é política?
Mussa - Não. Independentemente do que eu pense a respeito
dos candidatos e do que declarem
o presidente FHC, o secretário
[do Tesouro dos EUA, Paul]
O'Neill ou [o presidente do BC
brasileiro, Armínio] Fraga, os
candidatos não são responsáveis
pelos atuais problemas. A crise
atual é consequência das políticas
executadas pelo governo FHC. É
absurda a noção de que a política
do governo tem sido espetacular e
que, não fosse por candidatos malucos, a situação estaria calma.
Folha - Armínio está demorando
para buscar um compromisso dos
bancos internacionais de manter linhas de crédito para o Brasil?
Mussa - Em 1999, o governo brasileiro fez esse esforço. Muitos
bancos se comprometeram, voluntariamente, a manter sua exposição no Brasil, desde que seus
colegas fizessem o mesmo. Foi
criado um sistema de monitoramento para verificar se os bancos
estavam cumprindo a promessa.
O fato de o governo estar no fim
torna muito difícil levar os bancos
a se comprometerem com qualquer coisa. Em 1999, FHC tinha
acabado de se reeleger. Além disso, Fraga teme provocar uma redução ainda maior das linhas, ao
dar início a essas conversas. Se os
bancos começarem a avaliar que
serão pressionados a manter sua
exposição no Brasil, irão acelerar
o corte das linhas antes mesmo de
as negociações começarem. Se forem levados a congelar um nível
de empréstimos ao país, garantirão ao menos que esse volume seja congelado num patamar baixo.
Folha - Em trabalho recente sobre
a Argentina, o sr. diz que o FMI fracassou ao não exigir do presidente
Carlos Menem um esforço fiscal entre 1996 e 1998, quando o país
crescia e esbanjava receitas de privatização. O FMI, o sr. diz, temia
"constranger" autoridades argentinas num momento em que Menem era festejado em todo o mundo. Não aconteceu algo similar nos
primeiros anos do governo FHC?
Mussa - Havia uma diferença
importante. A economia argentina funcionou sob a supervisão de
programas do FMI durante quase
toda a década de 90. O programa
do Fundo com o Brasil começou
em outubro/novembro de 1998. O
desempenho fiscal do primeiro
mandato de Cardoso foi péssimo.
Ele garantiu um segundo mandato à custa da elevação da dívida
pública e da queima de receitas da
privatização. O desempenho fiscal do Brasil entre 1994 e 1998 foi
muito pior do que o da Argentina
no mesmo período, mas o FMI
não assinou embaixo porque não
havia programa com o país.
Folha - Quando o câmbio brasileiro tornou-se flexível, em 1999,
imaginava-se que, aliado a um esforço fiscal, a economia do país fosse capaz de suportar choques...
Mussa - O Brasil foi capaz de sair
do Real sem uma catástrofe. A
economia recuperou-se bem melhor do que esperava, após a desvalorização. Mas os problemas
continuam. Câmbio flexível não é
uma panacéia para os mercados
emergentes. Governos e empresas
desses países fazem grande parte
de seus negócios em moeda estrangeira e sempre poderão ter
uma crise financeira externa.
Folha - Na prática, não basta liberar o câmbio quando sua dívida
continua atrelada ao dólar...
Mussa - Sim, e esse problema
ocorre mesmo se a dívida é inteira
doméstica, mas atrelada ao dólar.
Os BCs dos países emergentes não
podem expandir a liquidez, imprimir dólares.
Folha- O sr. acha possível o Brasil
reestruturar somente sua dívida
doméstica, sem alterar prazos e valores de sua dívida externa?
Mussa - A situação brasileira é
muito diferente da argentina. No
Brasil, a dívida em dólar é uma
parte muito pequena do total. Então, se o câmbio flutua, aumenta o
valor em real da dívida doméstica,
que flutua com o dólar. Nesse
processo, pode haver calotes privados, mas não é como na Argentina, onde, devido à quebra da
conversibilidade, é virtualmente
impossível manter o sistema bancário vivo e manter a santidade
dos contratos. É preciso reconhecer que, no Brasil, ainda há um
volume significativo da dívida doméstica denominada em reais e
desvinculada do dólar. Ainda que
o prazo dessa parcela da dívida seja curto, ele não é zero. Portanto o
governo estaria disposto a tolerar
uma inflação maior para corroer
uma parte da dívida.
Folha - Como ficaria o Plano Real
com uma inflação crescente?
Mussa - O Plano Real já está
morto. Foi substituído por um regime de metas de inflação. Até
agora, a inflação tem sido mantida em níveis baixos. Mas a taxa de
juros reais sobre a dívida em moeda doméstica é muito alta. A taxa
Selic está em 18% e a inflação, em
cerca de 8% -a taxa de juros
reais está acima de 10%. Quando
veio a pressão do mercado, o BC
rejeitou o aumento dos juros. Mas
não há alternativa: se os juros não
forem elevados, a taxa de inflação
pode subir para 10%, 15% ou 20%.
A dívida em reais pode ser corroída por uma inflação maior.
Folha - A a inflação pode tornar-se a salvação da dívida brasileira?
Mussa - Sim. É uma opção viável.
Folha - O que fazer com a dívida
atrelada à variação cambial?
Mussa - Essa dívida tem uma duração maior e pode esperar um
pouco mais. Para esse tipo de dívida, existem as opções de quebrar os contratos ou obrigar os
credores a renová-los. Mas será
difícil encontrar uma forma de
adotar essas medidas sem que o
sistema bancário fique insolvente.
Em 1999, os bancos chegaram a
ganhar dinheiro porque o governo vendera a eles títulos em dólar.
Eles estavam mais do que cobertos em sua exposição em dólar.
Agora a situação é diferente. O governo tem um problema de sustentação de sua dívida e talvez
queira taxar parte do capital dos
bancos. Mas não pode levá-los à
insolvência. O equilíbrio é difícil.
Folha - Se o Brasil optar por uma
inflação crescente para corroer o
valor da dívida doméstica, o sr. não
acha que haveria uma fuga ainda
maior de capital do país?
Mussa - Sim. É por isso que a
questão de controles de capital
pode vir à tona. Tem havido uma
grande perda de reservas. Uma alternativa seria impor controles. O
Brasil já utilizou esse instrumento
antes, mas, obviamente, há um
grande desejo de evitar isso agora.
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