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LUÍS NASSIF
A flor incandescente da poesia
Admito que não foi uma
dica brilhante que me deram, e não foi gesto prudente
aceitá-la. Mas quando me informaram que o Murilo e o Zé tinham sido presos na invasão do
largo São Francisco, em pleno
1969, achei que seria legal ficar
hospedado no apartamento vago que tinham na Casa do Estudante, ali na avenida São João.
Parece que o João estava por lá e
ficara com as chaves.
Em circunstâncias normais, a
idéia até que seria válida. Mas
estávamos sob o Ato Institucional nš 5, que instituiu a ditadura, e a Casa do Estudante era
um centro conhecido de agitação.
A besteira que fiz não foi me
expor aos milicos, mas aos antimilicos, devido ao detalhe de
que não me dei conta, quando
saí de Poços, mas que começou a
pesar como um pressentimento
quando desci do ônibus na avenida São João e rumei para a
Casa do Estudante: estava com
o cabelo à escovinha, na condição de atirador do Tiro de Guerra 147 de Poços de Caldas.
Cheguei na Casa do Estudante, um pardieiro de mais de dez
andares, peguei a chave com o
João, entrei no apartamento e
fiquei meia hora curtindo um
LP do Ataulfo Alves, do nosso
amigo Tomas Tarquínio. Depois tirei a roupa, os óculos e
deitei só de cueca.
Foi quando o mundo desabou
em cima de mim. Acordei com
murros na porta, levantei meio
tonto, abri, e dei de cara com
quatro estudantes, dois rapazes
e duas moças. Um dos rapazes
eu conhecia, era o Natan, de
Aguaí, com quem já tomara uns
pileques no Bachianinha. Anos
depois Natan entraria para a
guerrilha e fugiria do país com
uma bala na perna. Naquele
momento, eu sem óculos e com o
cabelo à escovinha, ele não me
reconheceu, perguntou vociferante "quem é você" e a mulher
magrinha nem esperou ele completar a pergunta e já avançou
de porrada para cima de mim,
me chamando de meganha
f.d.p. e perguntando o que eu
havia feito com seus amigos (deles).
A muito custo falei para o Natan que eu era eu, ele me perguntou o porquê do cabelo à escovinha e eu respondi se ele
nunca tinha ouvido falar em
serviço militar obrigatório. Aí
ele me reconheceu e segurou a
potra braba que teimava em me
cobrir de porrada. E foi essa a
única razão de eu não ter tomado uma porrada da qual teria
motivos para me vangloriar para o resto da vida: a dona do
murro era uma moça magrinha
de nome Orides Fontella, minha
vizinha de São João da Boa Vista, na época uma estudante de
letras com inclinações para a
poesia.
A vida não foi feliz com Orides, nem ela com seus amigos.
Nos anos seguintes, acompanhei
à distância a sua carreira, os
elogios que seu talento acumulava e os receios que seu nome
provocava.
Vivia miseravelmente. Fez
carreira no serviço público e se
aposentou como bibliotecária.
Teve consagração em vida dos
maiores críticos nacionais, dentre os quais Antonio Cândido de
Mello e Souza. O professor a ajudou como pôde, com críticas
consagradoras e com uma bolsa
de estudos que ele recebera de
uma fundação estrangeira.
Orides reagia como um bicho
acuado, um vulcão de sensibilidade que explodia na poesia
mas não conseguia canalizar
para as relações pessoais. Agredida pela vida, não sabia responder aos gestos de carinho e
de atenção. Explodia do mesmo
modo que quando era agredida.
Do professor, cortou as roseiras.
Deve ter feito pior com o David
Arrigucci. Fazia escândalos com
amigos, explodia com protetores, se perdia e perdia tudo o que
tinha e, quando nada mais tinha, ia abrigar o corpo magro
no velho prédio da Casa do Estudante.
A única luz que provinha dela
saía pelos poemas que rabiscava
desesperadamente, até se esvair
de vez em um sanatório de
Campos do Jordão, anos atrás.
Seu nome está consagrado nos
círculos mais seletos de poesia, e
sua obra, dispersa. Dia desses,
encontrei minha antiga professora de português, a Ana Maria
Salomão, que me presenteou
com um conto com o qual venci
um concurso do Instituto Educacional de São João, em 1968,
do qual o juiz foi o professor Antonio Cândido.
Ana procura juntar as poesias
esparsas de Orides. É trabalho
insano. A poeta morreu sem
deixar testamento e há que se
atentar para o inventário, para
os protocolos, para a burocracia, a mesma que fazia Orides
explodir como uma flor de lava
incandescente.
A cada dia que passa mais aumenta sua reputação. Para
muitos, Orides já faz parte do
Olimpo das maiores poetas do
século. Na minha memória, será
sempre a moça magrinha que
explodia uma agonia que não
sabia explicar, uma fúria selvagem, rústica, que servia para encobrir a poeta que não se bastou.
E-mail -
lnassif@uol.com.br
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