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OPINIÃO ECONÔMICA
Nem romano, nem império
RUBENS RICUPERO
Quatro fatos dominaram
a semana: os 25 anos do
pontificado de João Paulo 2º; o
salto tecnológico da China no espaço; o êxito no Conselho de Segurança de resolução expressiva
do retorno dos EUA à abordagem
multilateral no Iraque e o avanço
em Bruxelas na adoção da Constituição da Europa unificada e
ampliada com 25 países, do
Atlântico às estepes asiáticas.
Parece difícil, à primeira vista,
estabelecer um vínculo entre essas
notícias. Uma leitura cuidadosa,
entretanto, identifica o traço unificador: tomadas em conjunto,
elas indicam que a complexidade
das estruturas do poder no mundo contemporâneo não pode ser
reduzida a fórmulas simplistas
como as das teorias da emergência de novo Império Romano
num sistema unipolar.
Muito haveria a dizer sobre o
jubileu do papa e o papel que teve
na evolução do Leste Europeu e
na dissolução do comunismo. O
que desejo reter, contudo, é mais
recente, sua oposição vigorosa à
invasão do Iraque e condenação
sem apelo à guerra em geral e à
preventiva em particular. Conforme realçou a televisão européia,
foi graças aos gestos e às palavras
de João Paulo 2º que os ataques
sucessivos ao Afeganistão e ao
Iraque não foram instrumentalizados como uma cruzada do cristianismo contra o islã, causando
dano irreparável às relações com
1 bilhão de muçulmanos.
Quase 60 anos atrás, Stálin fazia pergunta sarcástica: "Quantas divisões possui o papa?". Salvo
a memória amarga de pesadelo
monstruoso, sobra hoje pouco ou
nada das divisões e blindados a
serviço do terror stalinista. Em
contraste, um chefe religioso armado apenas da força interior da
consciência conquistou em todo o
planeta, inclusive no islã, influência e respeito incomparavelmente
superiores aos de todos os poderosos líderes ocidentais. É que o poder não nasce só da boca do fuzil,
como dizia outro tirano. Ele brota
também dos "hearts and minds",
dos corações e das mentes, das
emoções, sentimentos, juízos, da
afirmação da consciência moral
quando os investidos de responsabilidade têm a coragem de não
guardar silêncio diante da violação de valores indiscutíveis.
A colocação do primeiro chinês
em órbita é a última demonstração de que, passo a passo, vem a
China completando, de modo paciente e metódico, sua transformação, primeiro em potência na
economia e no comércio, em seguida na tecnologia de ponta, base para consolidar o poder geoestratégico. Até agora, as derrapagens graves foram raras e logo
corrigidas. Fica cada vez mais difícil negar que novo astro desponta no horizonte.
Há alguma semelhança remota
entre o processo chinês e o europeu. Nos dois casos, velhas civilizações ameaçadas de perder a irradiação que tiveram no passado,
devido ao retardamento econômico-tecnológico ou às divisões
debilitadoras, se esforçam em remover as causas do declínio.
De forma também sistemática é
o que os europeus estão fazendo a
fim de construir a unidade econômica e política entre eles. O público, a imprensa tendem a concentrar-se no episódico, circunstancial -a sobrevivência das divisões-, não vendo às vezes o fundamental. Peça a peça -a política agrícola, o mercado comum, a
adesão da Inglaterra, as sucessivas expansões, a moeda comum- o mosaico da integração
vai ganhando contorno e cores.
Desde o início da caminhada,
após o fim da Segunda Guerra,
jamais houve um retrocesso sério
em meio século. A adoção da
Constituição é um ato fundador
gigantesco, uma dessas raras
transformações merecedoras da
qualificação de históricas.
Encerra sentido positivo a retomada pelos americanos da busca
de consenso no Conselho de Segurança e a atitude conciliadora
que adotaram para até certo ponto acomodar as preocupações do
secretário-geral Kofi Annan e de
outros países. Prevaleceram afinal em Washington a moderação
e o bom senso, que aconselham a
reconhecer os limites do poder
ianque. Pode ser que a resolução
não resulte em aportes espetaculares de tropas ou dinheiro, como
se desejava, mas ela melhora o
quadro político, diplomático e jurídico da ocupação do Iraque e do
incipiente governo local.
Há algo de comum em todos esses desenvolvimentos. Cada um
deles põe em realce uma diferente
dimensão do poder: a moral, a
tecnológica, a oriunda da unificação política, a da legitimidade internacional derivada de resolução consensual do Conselho de
Segurança. Pode-se ir além e mostrar que o poder jamais é monolítico ou redutível apenas à componente militar, segundo expressa a
frase atribuída a Napoleão: "Com
as baionetas, pode-se fazer tudo,
menos sentar-se em cima delas".
Isto é, além do terreno estratégico-militar, o poder se exerce em
numerosos cenários: o político-diplomático, o econômico, o financeiro, o comercial, o tecnológico, o
da legitimidade jurídica, o da
moral e da opinião pública.
Cada cenário exige meios distintos, e o tipo de jogo varia de um
a outro. No passado, na era da
balança de poder dos séculos 18 e
19 na Europa, quando se equilibravam cinco, seis ou sete potências, cada uma era importante
em cada cenário particular. Hoje,
não. Há países, como o Japão e a
Alemanha, que são relevantes em
economia, finanças, tecnologia,
mas não em termos militares,
existindo igualmente um tipo de
poder no domínio dos valores e
dos símbolos, da moral e da opinião, como o detido pelo papa e
por Kofi Annan. A excepcionalidade dos EUA é que eles são os
únicos a desempenhar papel de
primeira grandeza em praticamente todos os tabuleiros, quase
sem exceção. Isso não quer dizer
que eles açambarquem a totalidade do poder em cada um deles
ou que possam embarcar em infindáveis aventuras militares
contra integrantes de "eixos do
mal", sem esticar até o ponto de
ruptura os limites impostos pela
disponibilidade de tropas, a capacidade da economia ou o apoio
político da população.
Outrora a configuração do sistema internacional -uni, bi ou
multipolar- dependia do número de participantes principais no
jogo de poder envolvendo todos os
tabuleiros: um (Roma, a "monarquia universal"), dois (EUA e
URSS) ou vários (o sistema europeu antes de 1914). Hoje, o equilíbrio é expressão não tanto do número de atores mas dos meios e
cenários diferentes: militar, político, econômico etc.
Só quem confunde unilateral
com unipolar é que pode imaginar que os EUA são a nova Roma.
Os americanos não podem dar-se
ao luxo, como faziam os romanos, de dividir o mundo em vassalos e inimigos. A nova resolução
da ONU é expressão dessa realidade. Basta olhar para o que se
passa em Bagdá para ver que estamos longe da "imensa majestade da paz romana", de que falava
o poeta Juvenal.
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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