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ARTIGO/"J'ACCUSE"
Por que o Brasil não vai quebrar
ALEXANDRE SCHWARTSMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Houve poucas vezes em que
pude observar tanta discrepância como agora entre as opiniões dos analistas nacionais e estrangeiros em relação ao desfecho
mais provável para a crise brasileira. A opinião dos estrangeiros,
conforme exemplificada pelas recentes declarações de George Soros, enfatiza a falta de disposição
dos investidores estrangeiros em
adquirir ativos brasileiros como
sendo o motivo de uma iminente
reestruturação da dívida, ora a externa, ora a interna, ora as duas.
Em outras palavras, os mercados
poderiam impor ao governo brasileiro a decisão de reestruturar a
dívida simplesmente recusando o
seu financiamento.
Os analistas nacionais (eu inclusive) têm opinião bem diferente.
Muitos de nós ficamos perplexos
com a declaração de que o mercado pode impor uma reestruturação da dívida. Não se encontram
em lugar nenhum os passos exatos que levariam de altos
"spreads" sobre a dívida soberana
para uma inadimplência forçada.
Acredito que esses analistas têm
em mente algo parecido com a
crise argentina. Isto é, o mercado
recusa a rolagem da dívida do governo (sem nem sequer cogitar de
novas emissões para financiar o
déficit fiscal) e força o governo a
declarar moratória. Parece que se
pode dizer também, sem medo de
errar, que se trata, na verdade, de
uma analogia, em vez de um raciocínio bem elaborado sobre
uma crise de dívida iminente.
Posso imaginar que muitos leitores devam estar sorrindo sozinhos, pensando que eu vá em seguida lhes apresentar mais uma
vez os motivos pelos quais o Brasil
não é uma Argentina. Na verdade,
deverei seguir um caminho mais
ou menos assim. Mas, em vez de
destacar as particularidades dos
países, deverei mostrar as diferenças entre os regimes de câmbio
flutuante e fixo, bem como a natureza da dívida interna e o grau de
abertura da conta de capitais.
Com relação à dívida, devo chamar a atenção dos leitores para o
fato de que a maior parte (uns
75%) da dívida do governo é liquidada em reais, muito embora
uma parcela substancial da dívida
interna esteja indexada ao dólar.
Isso significa que o governo, que
detém o controle do Banco Central, dificilmente poderia ser forçado a uma moratória da dívida
interna mesmo no caso extremo
(e improvável) de os bancos se recusarem a rolar o débito.
Na prática, o Banco Central pode recomprar a dívida que vence
em determinada data e, em seguida, enxugar o excesso de liquidez.
Isto é, rolar a dívida no overnight.
Isso não é muito agradável, longe
disso, e qualquer analista (como
eu) formado numa época em que
toda a dívida interna era rolada
no overnight conhece muito bem
os efeitos colaterais negativos dessa alternativa. Mas os custos da
reestruturação da dívida seriam
muito maiores.
Isso posto, observamos também que, num regime de câmbio
flutuante com uma mobilidade
imperfeita de capitais, a possibilidade de o sistema bancário recusar a rolagem da dívida interna é
muito remota. O regime de câmbio flutuante é um sistema fechado, no sentido exato de que para
cada real que sai do país, tem de
haver outro real entrando, contanto que o BC não financie uma
fuga de capital mediante a venda
das reservas. Além disso, considerando os limites à mobilidade de
capital do país, o sistema financeiro tem pouca alternativa além de
manter a rolagem da dívida.
Com relação à dívida externa
soberana (pública), deve-se ter
em mente que: 1) é barata; 2) é de
longo prazo e 3) as necessidades
de financiamento para os próximos 15 ou talvez 27 meses cabem
nas reservas em moeda forte existentes, mais ainda se considerarmos as entradas de capital acertadas com o Banco Mundial e pelo
BID, sem nem sequer considerar
os recursos do FMI. Isto é, o governo brasileiro pode deixar de
recorrer aos mercados internacionais de capital pelo menos até
o final de 2003, e possivelmente
até o final de 2004, contanto que
não faça alguma tolice com suas
reservas internacionais.
Em vista dessas considerações,
seria necessário apresentar argumentos melhores para defender a
idéia de uma reestruturação da
dívida do governo induzida pelo
mercado. Ninguém ainda apresentou tais argumentos. Ademais,
acuso aqueles que acreditam ter
apresentado argumentos convincentes de terem se baseado em
simples analogias, nem sempre
fundamentadas, no lugar de uma
análise econômica profunda e detalhada. Analogias são mais baratas e mais fáceis, algumas vezes
simplesmente erradas, e nunca
substituirão uma análise.
SOBRE A DÍVIDA EXTERNA
As necessidades brutas de financiamento do Brasil para 2003,
definidas como o déficit em transações correntes para o ano mais
os pagamentos de amortização da
dívida de médio e longo prazos,
devem ficar em US$ 39,7 bilhões.
Mas temos de distinguir entre o
setor público e o privado, já que
este último tem de cobrir suas necessidades de moeda forte no
mercado de câmbio, ao passo que
o setor público em geral (embora
nem sempre) pode recorrer ao dinheiro guardado nas suas reservas internacionais.
Ainda assim, as necessidades de
financiamento para o setor público não-financeiro parecem bem
pesadas -US$ 25,2 bi. Mas deve-se notar que também essa cifra
deve ser dividida em dois bichos
diferentes: o dinheiro que o Brasil
deve ao FMI e aquele destinado
aos pagamentos relativos à dívida
soberana (descontadas as entradas de juros provenientes dos
rendimentos das reservas brasileiras). Os juros e a amortização
para 2003 sobre o empréstimo do
FMI totalizam US$ 16,4 bi, recursos esses que já fazem parte das
reservas do país, no montante de
US$ 17,3 bi no final de setembro.
Os pagamentos relativos à dívida soberana somam US$ 8,8 bilhões. Decompondo esse número,
verificaríamos que os pagamentos de amortização agendados para 2003 estariam em torno de US$
4,7 bilhões, ao passo que os pagamentos brutos de juros chegariam a US$ 5,9 bilhões, com um
total geral de US$ 10,6 bilhões.
Mas o Banco Central deverá receber uns US$ 2 bilhões em juros sobre as reservas brasileiras, reduzindo para US$ 8,6 bilhões as despesas líquidas para o serviço da
dívida soberana. Acrescentando
ao valor para 2003 os US$ 2,3 bi de
serviço líquido da dívida até o final de 2002, concluímos que o serviço da dívida soberana (amortização mais juros líquidos) totaliza
US$ 10,9 bilhões para os próximos
15 meses, comparado com as reservas internacionais líquidas de
US$ 21,1 bilhões.
Conforme o acordo com o FMI,
o Banco Central tem de manter
reservas líquidas mínimas de US$
5 bilhões; mas isso ainda deixa
uns US$ 16,1 bilhões para o serviço da dívida até o final de 2003,
bem acima das necessidades de
US$ 10,9 bilhões.
Considerando a necessidade de
financiamento não só em 2002 e
2003, mas em 2004 também, chegamos a um valor de US$ 22,9 bi,
que pode ser financiado sem recorrer-se aos mercados internacionais de capital, pois há uns US$
7 bilhões acertados com o Banco
Mundial e com o BID, que poderão aumentar as reservas do país.
Note-se ainda que não consideramos os recursos do FMI. (1)
Em suma, existem fortes motivos para acreditar que o governo
brasileiro pode deixar de recorrer
aos mercados internacionais de
capital, certamente até o final de
2003, e muito provavelmente em
2004 também.
Isso significa não só que a recusa do mercado internacional em
financiar o governo tem pouca
importância para o programa de
financiamento do Tesouro Nacional para a sua dívida soberana,
mas também que os atuais altos
custos de endividamento, manifestados pelos grandes spreads,
não contaminam o custo médio
da dívida soberana, que continua
próximo de 8% a 8,5% ao ano,
comparado com os custos marginais de 24% a 25% ao ano.
Nesse sentido, nós nos perguntamos o que realmente está por
trás de declarações como aquelas
feitas por George Soros, nas quais
relacionou o custo de endividamento marginal (isto é, o custo no
qual o Brasil incorreria se emitisse
novos títulos de dívida neste momento) com considerações sobre
a solvência da dívida. Se o Brasil
tomasse dinheiro às taxas atuais
(o que não está fazendo nem precisa fazer durante pelo menos 15
meses), e se isso contaminasse todo o custo da dívida (o que não
acontece, porque o grosso da dívida paga taxas muito menores),
Soros poderia estar certo. De outra forma, é apenas uma afirmação vazia, revelando uma surpreendente falta de conhecimento da parte de uma pessoa tão rica.
Tudo considerado, a idéia de
que o Brasil pudesse ser forçado a
uma reestruturação da dívida,
porque os investidores não estivessem mais adquirindo papéis
da dívida brasileira, é simplesmente errada.
A menos que se tenha a expectativa de que os mercados permaneçam fechados ao Brasil por
mais tempo ainda, não há como
os mercados imporem uma reestruturação da dívida soberana a
um governo relutante.
Por certo, existe um argumento
mais sofisticado, que é o seguinte.
Embora a atual escassez de capital
estrangeiro talvez não imponha
uma restrição absoluta na capacidade de pagar a dívida externa,
pode assim mesmo levar a uma
reestruturação da dívida na esfera
interna. A fraqueza da taxa de
câmbio elevaria a dívida indexada
ao dólar, o que acabaria forçando
uma reestruturação da dívida interna e, por motivos políticos,
uma medida semelhante em relação à dívida externa. Acredito que
isso esteja errado.
SOBRE A DÍVIDA INTERNA
Antes de prosseguirmos para o
tema da solvência, que é o tema
relevante para tratarmos das considerações sobre a taxa de câmbio, pode ser útil examinar o problema da rolagem e as possibilidades de uma crise relativa à dívida, que seria causada pelo mercado interno ao recusar-se a aceitar
papéis do governo.
Devemos notar, em primeiro
lugar, que a probabilidade de um
problema como esse surgir é muito menor do que parece no momento. Os valores da rolagem da
dívida não estão muito altos no
momento, mas o problema se
concentra, na verdade, na dívida
atrelada ao dólar, ao passo que a
dívida denominada em reais tem
sido rolada inteiramente.
A questão da dívida atrelada ao
dólar tem a ver essencialmente
com a atual fraqueza do real, que
neste momento parece muito acima de qualquer estimativa razoável de um ponto de equilíbrio no
curto prazo, sem nem sequer considerar os níveis de equilíbrio no
longo prazo. Considerando isso,
quase todas as expectativas apontam para alguma valorização da
moeda nacional, que se verificaria
num horizonte previsível.
Assim, para uma taxa à vista de
R$ 3,86/US$ 1 no momento em
que este relatório foi escrito, os
contratos de futuros de dólar para
abril indicam um nível em torno
de R$ 3,55/US$ 1, isto é, uma queda de aproximadamente 8% no
preço do dólar nos próximos seis
meses. Ao mesmo tempo, os contratos de futuros de juros indicam
um rendimento sobre ativos domésticos em torno de 24% ao ano.
Mesmo assim, considerando a valorização prevista do real, as taxas
de juros em instrumentos atrelados ao dólar devem ser mais altas
que as observadas em instrumentos em reais.
Para visualizar esse fato, considere uma investidora com R$ 100
hoje: ela pode comprar um instrumento em reais com um rendimento de 24% ao ano por seis meses, recebendo R$ 111,30 ao final
do período. Como alternativa, ela
poderia comprar um instrumento atrelado ao dólar à cotação de
R$ 3,86 hoje e convertê-lo em
reais à taxa de R$ 3,55 daqui a seis
meses. Para conseguir os mesmos
R$ 111,3 do primeiro investimento, necessita de uma taxa de juros
de 46% ao ano (21% em 6 meses)
sobre o instrumento em dólar.
Isso posto, essas taxas exigidas
são, de longe, altas demais para
que o Tesouro Nacional as aceite,
o que é a causa principal das dificuldades relacionadas à rolagem
dos instrumentos domésticos denominados em dólar. Em vez de
rolar a dívida em dólar a taxas como essas, o Tesouro tem preferido usar o seu colchão de dinheiro
para simplesmente liquidar as
suas dívidas dolarizadas.
Mas, dessa forma, deveria ter
havido um impacto significativo
sobre a oferta de moeda nos últimos meses, já que o dinheiro do
Tesouro Nacional vem, na verdade, da sua conta no BC, o que significaria um aumento na base
monetária. Mas não foi isso o que
aconteceu, pois o excesso de liquidez criado com a decisão de pagar
a dívida é normalmente enxugado, quase imediatamente, pelo
Banco Central, que vende papéis
do governo por um dia em troca
do dinheiro retirado do sistema.
De fato, se pensarmos sobre esse assunto, não poderia ser de outra forma. Considerando que o
Banco Central estabelece metas
para as taxas de juros, qualquer
aumento na oferta de moeda além
da procura por moeda faz com
que as taxas interbancárias caiam
a níveis abaixo da meta da taxa Selic. Nessas circunstâncias, o mais
provável é que os bancos depositem esses recursos adicionais no
Banco Central a fim de receber a
taxa-meta Selic, o que está de
acordo com o que observamos
nos últimos meses.
Em outras palavras, o montante
da dívida não rolado pelos canais
tradicionais pode ainda ser pago
em dinheiro emitido pelo Banco
Central (2), sendo depois retirado
com operações no overnight, isto
é, por meio de compromissos de
recompra de um dia nos quais o
Banco Central vende um título do
governo com um compromisso
de recompra para o dia seguinte.
Não é por acaso que o saldo desses compromissos, que estava em
menos R$ 8,8 bilhões no final de
2001 (indicando que o Banco
Central era credor líquido do
mercado naquele momento),
transformou-se num valor de
mais R$ 54,5 bilhões em agosto de
2002, o que significa que o Banco
Central passara à posição de tomador líquido.
Isso não é novidade para o país,
muito pelo contrário, a novidade
é, na verdade, que a vasta maioria
da dívida não vem sendo rolada
por esse canal. De fato, até uns seis
anos atrás, quase toda a dívida era
financiada por meio de recompras no overnight, e não é tão difícil imaginar que uma parcela
maior da dívida poderia seguir esse rumo também.
Dito isso, o acúmulo de dívida
no overnight significa obviamente um custo, porque se torna um
substituto mais próximo para dinheiro (3) e necessitaria tipicamente (tudo mais sendo constante) ou de um esforço maior na
frente monetária, ou de uma política fiscal mais apertada, ou de
uma combinação dos dois, para
produzir uma determinada meta
inflacionária.
Como alternativa, a mesma
combinação de políticas fiscal e
monetária poderia levar a uma inflação mais alta. Acontece, entretanto, que uma enorme massa de
liquidez, que poderia se transformar em demanda adicional por
ativos reais ou por moeda estrangeira num período muito curto,
não constitui um quadro muito
bonito, para dizer o mínimo. Ainda assim, tais custos parecem
bem menores em comparação
com os da alternativa de reestruturação da dívida.
Note-se que o sistema financeiro não tem alternativas aos títulos
do governo. Isso pode parecer em
desacordo com a experiência diária, já que qualquer um pode, de
fato, liquidar sua posição em títulos do governo e comprar outros
ativos, tais como imóveis ou moeda estrangeira. Mesmo assim, o
sistema consolidado não consegue fazê-lo, e não é muito difícil
discernir por que isso acontece.
O sistema como um todo não
pode vender sua posição em instrumentos da dívida, a menos que
venda a um comprador fora do
próprio sistema (o Banco Central) ou espere até o vencimento.
Mesmo assim, para efeito de argumentação, suponhamos que o
Banco Central recompre LFTs
dos bancos ou de fundos mútuos
e depois os antigos detentores
desses títulos decidam comprar
ativos reais ou moeda estrangeira.
Se comprarem ativos reais,
aquele que vendeu os ativos tem
agora dinheiro, que acabará retornando ao setor financeiro. Da
mesma forma, se alguém comprar dólares, contanto que estes
não sejam adquiridos do Banco
Central, há necessariamente outro que lhe vendeu a moeda estrangeira e que é agora um feliz
detentor de moeda nacional, a
qual, novamente, tem de retornar
ao setor financeiro. Uma vez que
o dinheiro tiver chegado aos bancos, o mesmo raciocínio acima se
aplica: ou os bancos retêm o dinheiro ocioso nos seus cofres, ou
o depositam no Banco Central na
base de overnight.
Compare este último caso com
o que teria ocorrido no caso de o
regime cambial ser de taxas fixas.
Em tal caso, o Banco Central teria
fornecido os dólares e a moeda
nacional teria desaparecido para
dentro dos cofres do Banco Central, o que significa que o sistema
como um todo poderia ter encontrado um meio de sair do país.
Sob um regime de taxas flutuantes, entretanto, isso já não é possível: o dinheiro permanece no sistema e, enquanto está lá (4), os
bancos não teriam qualquer alternativa no fim do dia (literalmente,
neste caso), a não ser depositar este dinheiro no Banco Central para
retomá-lo no dia seguinte.
(Continua na página seguinte)
1. Note-se que, nos meus cálculos, não
considerei a dívida que já pode ter sido
paga sob o programa de recompra lançado nos primeiros meses de 2002. É
possível, portanto, que o serviço efetivo
da dívida seja inferior aos valores que temos aqui.
2. Note-se que toda a dívida doméstica
é paga em moeda nacional. Mesmo os títulos atrelados ao dólar são liquidados
em reais, não em dólares, uma moeda
que permanece monopólio do Banco
Central.
3. Sobre esse assunto recomendo ler um
ensaio recente de Persio Arida: "Financially indexed debt and inflation targeting: an expository note" (2002). Na verdade, esta é uma primeira versão do ensaio, sendo que existem versões mais recentes em português.
4. Somente uma corrida contra os bancos tornaria inválido esse argumento.
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