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ANÁLISE/ESTADOS UNIDOS
O declínio do império americano
IMMANUEL WALLERSTEIN
Os Estados Unidos estão em declínio? Poucas pessoas hoje acreditariam nessa afirmativa. Para o cientista político Immanuel Wallerstein, 71, professor da Universidade
Yale, na verdade os Estados Unidos estão deixando de ser uma potência mundial desde a década de 70. Em sua visão, a reação americana aos ataques terroristas simplesmente acelerou o declínio que já vinha de antes. Wallerstein mostra por que a "Pax
Americana" está desbotando com um exame da geopolítica do século 20, particularmente as últimas três décadas. Esse exercício revela uma simples e inescapável conclusão: os fatores econômicos, políticos e militares que contribuíram para a hegemonia
dos Estados Unidos são os mesmos que inexoravelmente produzirão seu declínio.
A ascensão dos Estados
Unidos à hegemonia global
foi um longo processo que começou de fato com a recessão mundial de 1873. Naquela época, os
Estados Unidos e a Alemanha começaram a adquirir uma parcela
crescente dos mercados globais,
principalmente à custa da contínua recessão da economia britânica. Ambos os países tinham recentemente conquistado uma base política estável: os Estados Unidos ao encerrar com sucesso a
Guerra Civil e a Alemanha alcançando a unificação e derrotando a
França na Guerra Franco-Prussiana.
De 1873 a 1914, os Estados Unidos e a Alemanha tornaram-se os
principais produtores em certos
setores chaves: aço e mais tarde
automóveis nos Estados Unidos;
química industrial na Alemanha.
Os livros de história registram
que a Primeira Guerra Mundial
irrompeu em 1914 e terminou em
1918, e que a Segunda Guerra
Mundial durou de 1939 a 1945. No
entanto, é mais sensato considerar as duas como uma única e
contínua "guerra de 30 anos" entre os Estados Unidos e a Alemanha, com tréguas e conflitos locais
espalhados entre elas.
A competição para a sucessão
hegemônica assumiu um teor
ideológico em 1933, quando os
nazistas chegaram ao poder na
Alemanha e iniciaram sua empreitada para transcender totalmente o sistema global, não buscando a hegemonia dentro do sistema vigente, mas sobretudo uma
forma de império global. Lembre-se do slogan nazista "ein tausendjähriges Reich" (um império de
mil anos). Por sua vez, os Estados
Unidos assumiram o papel de defensores do liberalismo centrista
mundial -lembre-se das "quatro
liberdades" do ex-presidente
americano Franklin D. Roosevelt
(liberdade de expressão, de religião, da necessidade e do medo)- e entraram numa aliança
estratégica com a União Soviética,
possibilitando a derrota da Alemanha e seus aliados.
A Segunda Guerra Mundial resultou numa enorme destruição
de infra-estrutura e de populações por toda a Eurásia, do oceano Atlântico ao Pacífico, e quase
nenhum país ficou imune. A única grande potência industrial do
mundo que saiu intacta e até muito reforçada, sob uma perspectiva
econômica, foram os Estados
Unidos, que agiram rapidamente
para consolidar sua posição.
Mas a aspiração à hegemonia
enfrentou alguns obstáculos políticos práticos. Durante a guerra,
as potências aliadas concordaram
com a fundação das Nações Unidas, composta basicamente pelos
países que participaram da coalizão contra as potências do Eixo. A
característica crítica da organização era o Conselho de Segurança,
a única estrutura que poderia autorizar o uso da força. Como a
Carta da ONU deu o direito de veto a cinco potências, incluindo os
Estados Unidos e a União Soviética, o conselho ficou de modo geral sem efeito prático. Assim, não
foi a fundação das Nações Unidas
em abril de 1945 que determinou
as limitações geopolíticas da segunda metade do século 20, mas,
sim, o encontro em Ialta entre
Roosevelt, o primeiro-ministro
britânico Winston Churchill e o
líder soviético Josef Stálin, dois
meses antes.
Os acordos formais de Ialta foram menos importantes do que
os acordos informais tácitos, que
só podem ser avaliados observando o comportamento dos Estados
Unidos e da União Soviética nos
anos seguintes. Quando a guerra
terminou na Europa, em 8 de
maio de 1945, tropas soviéticas e
ocidentais (isto é, americanas,
britânicas e francesas) estavam situadas em determinados locais,
basicamente acompanhando
uma linha no centro da Europa,
que passou a ser chamada de Linha Oder-Neisse. Exceto por alguns pequenos ajustes, elas permaneceram lá. Em retrospectiva,
Ialta significou um acordo entre
ambos os lados de que elas poderiam ficar lá e que nenhum lado
usaria a força para expulsar o outro. Esse acordo tácito também se
aplicava à Ásia, como provam a
ocupação do Japão pelos Estados
Unidos e a divisão da Coréia. Politicamente, portanto, Ialta foi um
acordo sobre o status quo em que
a União Soviética controlava cerca de um terço do mundo e os Estados Unidos, o restante.
Washington também enfrentou
desafios militares mais sérios. A
União Soviética tinha as maiores
forças terrestres do mundo, enquanto o governo americano enfrentava pressão doméstica para
reduzir seu Exército, particularmente abolindo o recrutamento
obrigatório.
Os Estados Unidos, portanto,
decidiram afirmar seu poderio
militar não por meio de forças terrestres, mas por meio do monopólio das armas nucleares (e uma
força aérea capaz de transportá-las). Esse monopólio logo desapareceu: em 1949, a União Soviética
também tinha desenvolvido armas nucleares.
Desde então, os Estados Unidos
ficaram reduzidos a tentar evitar a
aquisição de armas nucleares (e
armas químicas e biológicas) por
outras potências, uma iniciativa
que no século 21 não parece ter
grande sucesso.
Até 1991, os Estados Unidos e a
União Soviética coexistiram no
"equilíbrio do terror" da Guerra
Fria. Essa situação foi testada cegamente apenas três vezes: no
bloqueio de Berlim, em 1948-49,
na Guerra da Coréia, em 1950-53,
e na crise dos mísseis cubanos, em
1962. O resultado em cada caso foi
a restauração do status quo. Além
disso, veja que sempre que a
União Soviética enfrentou uma
crise política em seus regimes satélites -Alemanha Oriental em
1953, Hungria em 1956, Tchecoslováquia em 1968 e Polônia em
1981-, os Estados Unidos praticaram pouco mais que exercícios
de propaganda, permitindo que a
União Soviética agisse como melhor lhe conviesse.
É claro que essa passividade não
se estendia à área econômica. Os
Estados Unidos capitalizaram o
ambiente da Guerra Fria para lançar iniciativas maciças de reconstrução econômica, primeiro na
Europa Ocidental e depois no Japão (assim como na Coréia do Sul
e em Taiwan). O raciocínio era
óbvio: de que servia ter uma superioridade produtiva tão avassaladora se o resto do mundo não representasse uma demanda efetiva?
Além disso, a reconstrução econômica ajudava a criar obrigações
clientelistas por parte dos países
que recebiam ajuda americana;
esse sentido de obrigação promovia a disposição para entrar em
alianças militares e, ainda mais
importante, à subserviência política.
Finalmente, não se deve subestimar o componente ideológico e
cultural da hegemonia americana. O período imediatamente
após 1945 pode ter sido o auge
histórico da popularidade da
ideologia comunista. É fácil esquecer hoje as amplas votações
obtidas por partidos comunistas
em eleições livres em países como
Bélgica, França, Itália, Tchecoslováquia e Finlândia, sem falar no
apoio que os partidos comunistas
obtiveram na Ásia -Vietnã, Índia, Japão- e por toda a América
Latina. E isso ainda deixa de fora
áreas como China, Grécia e Irã,
onde as eleições livres ficaram ausentes ou foram restritas, mas onde os partidos comunistas gozavam de um apelo generalizado.
Em reação, os Estados Unidos
mantiveram uma maciça ofensiva
ideológica anticomunista.
Em retrospectiva, essa iniciativa
parece amplamente bem-sucedida: Washington exibiu seu papel
como líder do "mundo livre" de
modo pelo menos tão eficaz
quanto a União Soviética exibia
sua atitude de líder do campo
"progressista" e "antiimperialista".
O sucesso dos Estados Unidos
como potência hegemônica no
período pós-guerra criou as condições para o colapso hegemônico do país. Esse processo é captado por quatro símbolos: a Guerra
do Vietnã, as revoluções de 1968, a
queda do Muro de Berlim em
1989 e os atentados terroristas de
setembro de 2001. Cada símbolo
se ergueu sobre o anterior, culminando na situação em que os Estados Unidos se encontram hoje:
uma superpotência solitária, que
carece de verdadeiro poder, um líder mundial que ninguém segue e
poucos respeitam e um país que
flutua perigosamente em meio ao
caos global que não pode controlar.
O que foi a Guerra do Vietnã?
Principalmente foi o esforço do
povo vietnamita para pôr fim ao
domínio colonial e estabelecer
seu próprio Estado. Os vietnamitas combateram os franceses, os
japoneses e os americanos e no final os vietnamitas venceram
-uma grande realização, na verdade. Do ponto de vista geopolítico, porém, a guerra representou a
rejeição ao status quo de Ialta por
populações então rotuladas como
Terceiro Mundo. O Vietnã tornou-se um símbolo muito poderoso, porque Washington foi suficientemente tola para investir todo o seu poderio militar na luta e,
ainda assim, os Estados Unidos
perderam. É verdade que os Estados Unidos não utilizaram armas
nucleares (decisão que certos grupos míopes de direita muito criticaram), mas esse uso teria destroçado os acordos de Ialta e poderia
ter produzido um holocausto nuclear, resultado que os Estados
Unidos simplesmente não poderiam arriscar.
Mas o Vietnã não foi simplesmente uma derrota militar ou
uma maldição para o prestígio
americano. A guerra aplicou um
grande golpe contra a capacidade
de os Estados Unidos continuarem sendo a potência econômica
dominante no mundo. O conflito
foi extremamente caro e praticamente esgotou as reservas de ouro dos Estados Unidos, que vinham sendo tão abundantes desde 1945.
Além disso, os Estados Unidos
enfrentaram esses gastos exatamente quando a Europa Ocidental e o Japão experimentavam
grandes surtos econômicos. Essas
condições puseram fim à predominância americana na economia
global.
Desde o final dos anos 60, membros dessa tríade têm sido praticamente equivalentes econômicos,
cada um se saindo melhor durante alguns períodos, mas nenhum
se distanciando muito dos outros.
Quando as revoluções de 1968
irromperam em todo o mundo, o
apoio aos vietnamitas tornou-se
um importante componente retórico. "Um, dois, muitos Vietnãs" e
"Ho, Ho, Ho Chi Minh" foram
entoados em muitas ruas, inclusive nos Estados Unidos. Mas a geração de 68 não condenava apenas a hegemonia americana. Condenava a conivência soviética
com os Estados Unidos, condenava Ialta e usou ou adaptou a linguagem dos revolucionários culturais chineses, que dividiram o
mundo em dois campos: as duas
superpotências e o resto do mundo.
A denúncia da conivência soviética levou logicamente à denúncia
das forças nacionais intimamente
aliadas à União Soviética, o que na
maioria dos casos significava os
partidos comunistas tradicionais.
Mas os revolucionários de 1968
também atacaram outros componentes da Velha Esquerda -os
movimentos de libertação nacional no Terceiro Mundo, os movimentos social-democratas na Europa e os democratas do New
Deal nos Estados Unidos, acusando-os também de conivência com
o que os revolucionários chamavam genericamente de "imperialismo americano".
O ataque à conivência soviética
com Washington, mais o ataque
contra a Velha Esquerda, enfraqueceu ainda mais a legitimidade
dos acordos de Ialta sobre os
quais os Estados Unidos tinham
moldado a ordem mundial. Ele
também minava a posição do liberalismo centrista como a única
e legítima ideologia global. As
consequências políticas diretas
das revoluções mundiais de 68 foram mínimas, mas as repercussões geopolíticas e intelectuais foram enormes e irrevogáveis. O liberalismo de centro caiu do trono
que tinha ocupado desde as revoluções européias de 1848 e que havia permitido que ele incluísse
tanto conservadores quanto radicais. Essas ideologias retornaram
e mais uma vez representaram
uma verdadeira gama de opções.
Os conservadores se tornariam
novamente conservadores, e os
radicais, radicais. Os liberais de
centro não desapareceram, mas
foram reduzidos. Nesse processo,
a posição ideológica oficial dos
Estados Unidos -antifascista,
anticomunista, anticolonialista-
parecia frágil e inconvincente para uma porção cada vez maior das
populações mundiais.
O início da estagnação econômica internacional na década de
70 teve duas consequências importantes para o poderio americano. Primeiro, a estagnação resultou no colapso do "desenvolvimentismo", a idéia de que cada
país poderia avançar economicamente se o Estado tomasse medidas adequadas, que era a principal reivindicação ideológica dos
movimentos da Velha Esquerda
então no poder.
Um após outro, esses regimes
enfrentaram distúrbios internos,
o declínio dos padrões de vida,
uma dívida crescente, a dependência das instituições financeiras internacionais e a erosão de
sua credibilidade. O que nos anos
60 parecia ser uma navegação
bem-sucedida da descolonização
do Terceiro Mundo pelos Estados
Unidos, minimizando as rupturas
e maximizando a suave transferência de poder para regimes que
eram desenvolvimentistas, mas
muito pouco revolucionários, deu
lugar à desintegração da ordem,
ao descontentamento fervilhante
e a temperamentos radicais não
canalizados.
Quando os Estados Unidos tentaram intervir, fracassaram. Em
1983, o presidente Ronald Reagan
mandou tropas para o Líbano para restaurar a ordem. As tropas na
verdade foram praticamente expulsas. Ele compensou invadindo
Granada, um país sem tropas.
O presidente George Bush invadiu o Panamá, outro país sem tropas. Mas, depois, interveio na Somália para restaurar a ordem, e os
Estados Unidos foram na verdade
expulsos de modo um tanto ignominioso. Como havia pouco que
o governo americano realmente
pudesse fazer para inverter a tendência de declínio da hegemonia,
ele preferiu simplesmente ignorar
essa tendência, uma política que
prevaleceu desde a retirada do
Vietnã até 11 de setembro de 2001.
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