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ANÁLISE/WALLERSTEIN
Uma hipótese para a impotência dos EUA
Enquanto isso, os verdadeiros conservadores começaram a assumir o controle de países-chave e instituições internacionais. A ofensiva neoliberal dos
anos 80 foi marcada pelos regimes
Thatcher e Reagan e pelo surgimento do FMI (Fundo Monetário
Internacional) como um ator-chave no cenário mundial. Antes
(por mais de um século), as forças
conservadoras tinham tentado se
retratar como liberais mais sensatas. Agora, os liberais de centro
eram obrigados a argumentar que
eram conservadores mais eficazes.
Os programas conservadores
eram claros. No plano doméstico,
os conservadores tentavam implementar políticas que reduzissem o custo do trabalho, minimizando as restrições ambientais
aos produtores e cortando os benefícios do bem-estar estatal. Os
verdadeiros sucessos foram modestos, por isso os conservadores
passaram então a atuar vigorosamente na arena internacional.
As reuniões do Fórum Econômico Mundial em Davos forneceram um campo de encontro para
as elites e a mídia. O FMI representava um clube para ministros
das Finanças e banqueiros centrais. E os Estados Unidos pressionaram pela criação da Organização Mundial do Comércio, para
promover os livres fluxos comerciais pelas fronteiras mundiais.
Enquanto os Estados Unidos
não estavam olhando, a União Soviética desmoronava. Sim, Ronald Reagan tinha chamado a
União Soviética de "império do
mal" e usou a retórica bombástica
de pedir a destruição do Muro de
Berlim, mas os Estados Unidos
realmente não pretendiam e certamente não foram responsáveis
pela queda da União Soviética. Na
verdade, a União Soviética e sua
zona imperial no Leste Europeu
desabaram devido à desilusão popular com a velha esquerda, em
combinação com as iniciativas do
líder soviético Mikhail Gorbatchov para salvar seu regime, liquidando Ialta e instituindo a liberalização interna (perestroika mais
glasnost). Gorbatchov conseguiu
liquidar Ialta, mas não salvar a
União Soviética (embora quase o
tenha conseguido, deve-se dizer).
Os Estados Unidos ficaram surpresos e atônitos com o súbito colapso, sem saber como lidar com
as consequências. O colapso do
comunismo na verdade significou o colapso do liberalismo, removendo a única justificativa
ideológica por trás da hegemonia
americana, uma justificativa tacitamente apoiada pelo adversário
ideológico ostensivo do liberalismo. Essa perda de legitimidade levou diretamente à invasão do
Kuait pelo Iraque, que o líder iraquiano Saddam Hussein jamais
teria ousado se os acordos de Ialta
continuassem vigentes.
Em retrospectiva, as iniciativas
americanas na Guerra do Golfo
conseguiram uma trégua basicamente na própria linha de partida. Mas uma potência hegemônica pode se satisfazer com um empate numa guerra com um poder
regional mediano? Saddam demonstrou que era possível entrar
numa briga com os Estados Unidos e sair inteiro. Ainda mais que
a derrota no Vietnã, o desafio ousado de Saddam comeu as entranhas da direita americana, particularmente as dos chamados falcões, o que explica o fervor de seu
atual desejo de invadir o Iraque e
destruir seu regime.
Entre a Guerra do Golfo e 11 de
setembro de 2001, as duas principais arenas de conflito mundial
foram os Bálcãs e o Oriente Médio. Os Estados Unidos exerceram importante papel diplomático em ambas as regiões. Olhando
para trás, quão diferentes seriam
os resultados se os Estados Unidos tivessem assumido uma posição totalmente isolacionista? Nos
Bálcãs, um Estado multinacional
economicamente bem-sucedido
(Iugoslávia) desmoronou, basicamente em suas partes componentes. Durante dez anos, a maioria
dos Estados resultantes iniciou
um processo de etnificação, experimentando uma violência brutal,
amplas violações de direitos humanos e guerras. A intervenção
externa, em que os Estados Unidos atuaram de modo proeminente, trouxe uma trégua e pôs
fim à violência mais evidente, mas
essa intervenção de modo nenhum reverteu a etnificação, que
hoje está consolidada e de certa
forma legitimada.
Esses conflitos teriam terminado de modo diferente sem o envolvimento americano? A violência poderia ter continuado por
mais tempo, mas os resultados
básicos provavelmente não teriam sido muito diferentes. O
quadro é ainda mais grave no
Oriente Médio, onde o envolvimento dos Estados Unidos foi
mais profundo, e seus fracassos,
mais espetaculares. Nos Bálcãs e
no Oriente Médio igualmente, os
Estados Unidos deixaram de
exercer seu poder hegemônico
com eficácia não por falta de vontade ou de esforço, mas por falta
de verdadeiro poder.
Então veio o 11 de setembro, o
choque e a reação. Sob o fogo dos
legisladores americanos, a CIA
(Agência Central de Inteligência,
na sigla em inglês) hoje afirma
que havia advertido o governo
Bush sobre possíveis ameaças.
Mas, apesar do enfoque da CIA
sobre a Al Qaeda e a perícia da inteligência do órgão, ele não pôde
prever (e portanto evitar) a execução dos ataques terroristas. É o
que afirmaria o diretor da CIA,
Robert Tenet. Esse depoimento
dificilmente pode tranquilizar o
governo ou o povo americanos.
Seja o que for que os historiadores decidam, os atentados de 11 de
setembro de 2001 representaram
um grande desafio ao poderio
americano. As pessoas responsáveis não representavam uma
grande potência militar. Eram
membros de uma força não-estatal, com alto grau de determinação, algum dinheiro, um grupo de
seguidores dedicados e uma forte
base em um Estado fraco. Em suma, não eram nada militarmente.
No entanto, tiveram sucesso em
um ataque ousado em solo americano.
George W. Bush chegou ao poder criticando muito o trabalho
do governo Clinton nos assuntos
externos. Bush e seus assessores
não o admitiram, mas sem dúvida
estavam conscientes de que o caminho de Clinton tinha sido o de
todo presidente americano desde
Gerald Ford, incluindo os de Ronald Reagan e George Bush pai. E
tinha sido até o caminho do atual
governo Bush antes do 11 de setembro. Basta olhar como Bush
tratou o caso da derrubada do
avião americano na China em
abril de 2001 para ver que prudência era o nome do jogo.
Depois dos atentados terroristas, Bush mudou de rumo, declarando guerra ao terrorismo, garantindo ao povo americano que
"o resultado é certo" e informando ao mundo que "ou estão do
nosso lado ou estão contra nós".
Há muito frustrados até mesmo
pelos mais conservadores governos americanos, os falcões finalmente passaram a dominar a política americana. Sua posição é
clara: os Estados Unidos detêm
um poderio militar avassalador e,
embora inúmeros líderes estrangeiros considerem insensato
Washington aplicar sua força militar, esses mesmos líderes não
podem fazer e não farão qualquer
coisa se os Estados Unidos simplesmente impuserem sua vontade ao resto. Os falcões acreditam
que os Estados Unidos devem
agir como uma potência imperial
por dois motivos: primeiro, os Estados Unidos podem fazer isso; e,
segundo, se Washington não
exercer sua força, os Estados Unidos se tornarão cada vez mais
marginalizados.
Hoje essa posição dos falcões
tem três expressões: o ataque militar no Afeganistão, o apoio de fato à tentativa israelense de liquidar a Autoridade Palestina e a invasão do Iraque, que estaria em
fase de preparativos militares.
Menos de um ano depois dos
atentados terroristas de setembro
de 2001, talvez seja cedo demais
para avaliar qual será o resultado
dessas estratégias.
Até agora, esses esquemas levaram à derrubada dos taliban no
Afeganistão (sem o desmantelamento completo da Al Qaeda ou a
captura de sua liderança); enorme
destruição na Palestina (sem tornar "irrelevante" o líder palestino
Iasser Arafat, como queria o primeiro-ministro israelense, Ariel
Sharon); e a forte oposição dos
aliados dos Estados Unidos na
Europa e no Oriente Médio aos
planos de invasão do Iraque.
A leitura dos fatos recentes pelos falcões enfatiza que a oposição
às ações americanas, embora séria, continua principalmente verbal. Nem a Europa Ocidental nem
a Rússia, a China ou a Arábia Saudita parecem dispostas a romper
seriamente os laços com os Estados Unidos. Em outras palavras,
os falcões acreditam que Washington realmente conseguiu se
safar. Os falcões supõem que um
resultado semelhante ocorrerá
quando os militares americanos
realmente invadirem o Iraque e,
depois, quando os Estados Unidos exercerem sua autoridade em
outras partes do mundo, seja no
Irã, na Coréia do Norte, na Colômbia ou talvez na Indonésia.
Ironicamente, a leitura dos falcões tornou-se de modo geral a
leitura da esquerda internacional,
que vem gritando contra as políticas americanas principalmente
por temer que as probabilidades
de sucesso dos EUA sejam altas.
Mas as interpretações dos falcões
estão erradas e apenas contribuíram para o declínio dos EUA,
transformando uma descida gradual numa queda muito mais rápida e turbulenta. Especificamente, as abordagens dos falcões vão
fracassar por motivos militares,
econômicos e ideológicos.
Sem dúvida, os militares continuam sendo a carta mais forte dos
EUA; na verdade, a única carta.
Hoje os Estados Unidos possuem
o mais formidável aparato militar
do mundo. E, a se acreditar nas
alegações de novas e incomparáveis tecnologias militares, a vantagem americana sobre o resto do
mundo é consideravelmente
maior hoje do que uma década
atrás. Mas então isso significa que
os EUA podem invadir o Iraque,
conquistá-lo rapidamente e instalar um regime amigo e estável? É
improvável. Tenha-se em mente
que, das três guerras sérias que os
EUA lutaram desde 1945 (Coréia,
Vietnã e Golfo), uma terminou
em derrota e duas em retirada
após o que poderia ser chamado
de "empate" -não é exatamente
um registro glorioso.
O Exército de Saddam não é o
dos taliban e o controle interno de
seus militares é muito mais coeso.
Uma invasão americana necessariamente envolveria uma importante força em terra, que teria de
abrir caminho até Bagdá e provavelmente sofreria baixas significativas. Essa força também precisaria de bases de onde partiria para
as lutas e a Arábia Saudita deixou
claro que não ajudará nesse sentido. O Kuait ou a Turquia ajudarão? Talvez, se Washington usar
todas as suas fichas.
Enquanto isso, pode-se esperar
que Saddam utilize todas as armas à sua disposição e é exatamente o que inquieta o governo
americano: que essas armas possam ser muito malignas. Os EUA
podem torcer os braços dos regimes da região, mas o sentimento
popular vê todo o negócio como o
reflexo de um profundo viés antiárabe nos EUA. Esse conflito pode ser vencido? O Estado-Maior
britânico aparentemente já informou ao primeiro-ministro Tony
Blair que não acredita nisso.
E sempre há a questão das "segundas frentes". Depois da Guerra do Golfo, as Forças Armadas
americanas tentaram se preparar
para a possibilidade de duas guerras regionais simultâneas. Depois
de algum tempo, o Pentágono
abandonou silenciosamente a
idéia, por ser impraticável e dispendiosa. Mas quem pode ter certeza de que nenhum potencial inimigo atacará quando os EUA estiverem atolados no Iraque?
Considere também a questão da
tolerância popular americana às
não-vitórias. Os americanos pairam entre um fervor patriótico
que apóia todos os presidentes
em tempo de guerra e um profundo impulso isolacionista. Desde
1945, o patriotismo se chocou
com um muro sempre que as baixas aumentaram. Por que a reação seria diferente hoje? E, mesmo que os falcões (quase todos civis) se sintam impermeáveis à
opinião pública, os generais americanos, queimados pelo Vietnã,
não se sentem.
E a frente econômica? Nos anos
80, inúmeros analistas americanos ficaram histéricos quanto ao
milagre econômico japonês. Eles
se acalmaram nos anos 90, diante
das conhecidas dificuldades financeiras do Japão. Mas, depois
de exagerar nas declarações sobre
como o Japão estava avançando
rapidamente, as autoridades
americanas hoje parecem complacentes, confiantes de que o Japão está muito atrás. Hoje em dia,
Washington parece mais inclinada a mostrar aos formuladores de
políticas japoneses o que eles estão fazendo errado.
Esse triunfalismo dificilmente
parece garantido. Considere a seguinte reportagem do "New York
Times" de 20 de abril passado:
"Um laboratório japonês construiu o computador mais rápido
do mundo, uma máquina tão poderosa que se equipara ao poder
de processamento dos 20 mais rápidos computadores americanos
juntos e supera de longe o líder
anterior, uma máquina construída pela IBM. A conquista [..." é a
evidência de que a corrida tecnológica, que a maioria dos engenheiros americanos pensava estar
vencendo facilmente, está longe
de terminar".
A análise continua, comentando que há "prioridades científicas
e tecnológicas contrastantes" nos
dois países. A máquina japonesa
foi construída para analisar mudanças climáticas, mas as máquinas americanas são desenhadas
para simular armas.
Esse contraste personifica a história mais antiga na história das
potências hegemônicas. O poder
dominante se concentra nos militares (em seu detrimento); o candidato a sucessor se concentra na
economia. O último sempre compensou amplamente. Foi o que
aconteceu com os Estados Unidos. Por que não deveria acontecer também com o Japão, talvez
em aliança com a China?
Finalmente, há a esfera ideológica. Hoje, a economia americana
parece relativamente fraca, ainda
mais considerando-se as exorbitantes despesas militares associadas às estratégias dos falcões.
Além disso, Washington continua politicamente isolada; virtualmente ninguém (exceto Israel) acha que a posição do falcão
faz sentido ou é digna de incentivo. Outros países temem ou não
estão dispostos a enfrentar Washington diretamente, mas até sua
indecisão está prejudicando os
Estados Unidos.
Mas a reação americana representa pouco mais que uma arrogante torcida de braço. A arrogância tem suas próprias negativas. Usar as fichas significa deixar
menos fichas para a próxima vez,
e a aquiescência a contragosto
provoca um ressentimento crescente. Durante os últimos 200
anos, os EUA conquistaram uma
quantidade considerável de crédito ideológico. Mas, hoje em dia, os
EUA estão gastando esse crédito
ainda mais depressa do que gastaram seus excedentes em ouro nos
anos 60. Os EUA enfrentam duas
possibilidades nos próximos dez
anos: podem seguir o caminho
dos falcões, com consequências
negativas para todos, mas especialmente para o país. Ou podem
perceber que as negativas são
grandes demais.
Simon Tisdall, do "Guardian",
argumentou recentemente que,
mesmo desconsiderando a opinião pública internacional, "os
Estados Unidos não são capazes
de ter sucesso numa guerra no
Iraque sozinhos sem incorrer em
enormes danos, principalmente
em termos de seus interesses econômicos e seu abastecimento
energético. Bush está reduzido a
falar duro e parecer ineficaz". E, se
os EUA invadirem o Iraque e forem obrigados a recuar, ele parecerá ainda mais ineficaz.
As opções do presidente Bush
parecem extremamente limitadas
e não há dúvida de que os EUA
continuarão a declinar como força decisiva nos assuntos mundiais
na próxima década. A verdadeira
questão não é se a hegemonia
americana está decaindo, mas se
os EUA podem encontrar uma
maneira de descer graciosamente,
com danos mínimos para o mundo e para si mesmos.
Immanuel Wallerstein é pesquisador-sênior na Universidade Yale e autor, recentemente, de "The End of the World
As We Know It: Social Science for the
Twenty-First Century" (Mineápolis: University of Minnesota Press, 1999), que
deve ser publicado no Brasil em breve
com o título "O Fim do Mundo como o
Concebemos".
Tradução de Luiz Roberto Mendes
Gonçalves
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