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São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 2003

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Os déficits, o dólar e os emergentes

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

Em suas duas edições, o boletim "Política Econômica em Foco", do Centro de Conjuntura da Unicamp, procura desvendar as razões dos desempenhos distintos das economias emergentes da Ásia e da América Latina na era da globalização.
Para estabelecer as diferenças entre a inserção asiática e a latino-americana na economia global, é preciso, em primeiro lugar, compreender a morfologia e a dinâmica do processo de internacionalização produtiva e financeira deflagrado a partir do começo dos anos 80, com a recuperação do dólar como moeda de transações e de reserva do sistema monetário internacional.
As transformações compreendem três movimentos simultâneos: 1) o avanço da internacionalização financeira, amparado, primeiro, na dívida pública americana e, depois, no endividamento privado dos anos 90; 2) os rumos da reestruturação produtiva mediante as fusões e aquisições e o direcionamento dos fluxos de investimento direto "estrangeiro"; 3) as mudanças importantes, daí decorrentes, na divisão internacional do trabalho e nos padrões de comércio.
Nos anos 80, o déficit orçamentário do governo Reagan foi o responsável pelo crescimento rápido do, até então, mais imponente déficit comercial, do pós-guerra. Já, nos anos 90, a ampliação do déficit em conta corrente dos EUA foi provocada por um forte crescimento do gasto e do endividamento privados. Nos dois momentos, é fundamental sublinhar, a economia americana ganhou liberdade para adotar, primeiro, política fiscal expansionista e, nos anos 90, política monetária e de crédito permissiva. Em ambas as situações, o crescimento a taxas elevadas foi caracterizado por expansão da demanda nominal a ritmo bem superior ao exibido pela produção doméstica, bem como por crescimento da relação endividamento total/PIB.
O ciclo dos anos 90 replicou com intensidade maior o fenômeno dos anos 80: a abertura das contas de capital do resto do mundo propiciou ao mercado financeiro dos EUA a oportunidade de comandar uma formidável expansão do crédito à produção e ao consumo domésticos. A alavancagem das famílias e das grandes empresas produtivas e o elevado endividamento do setor financeiro americano são a contrapartida do portentoso afluxo de capitais, mobilizado a partir das posições superavitárias em conta corrente -acumuladas na Ásia e na Europa- e das saídas de recursos dos países deficitários e devedores.
Durante os últimos 20 anos, a política monetária americana mostrou-se capaz de compatibilizar três objetivos: 1) administrar as condições de liquidez doméstica nas etapas de expansão e de contração dos dois ciclos; 2) garantir a resiliência do seu mercado financeiro ao conter a deflação de ativos; e 3) preservar o papel do dólar como moeda-reserva.
As transformações financeiras foram acompanhadas de mudanças na estratégia global da concorrência entre as empresas dominantes, com implicações sobre a natureza e a direção do investimento direto estrangeiro e do progresso técnico. A metástase do sistema empresarial da tríade desenvolvida -particularmente EUA e Japão- determinou uma impressionante ampliação dos fluxos de comércio. Não se trata apenas de reafirmar a importância crescente do comércio intrafirmas, mas de destacar o papel decisivo do "global sourcing", fenômeno que está presente, sobretudo, nas estratégias de deslocalização e de investimento que, nos anos 90, beneficiaram as economias asiáticas, a China em particular. Os economistas Michael Dooley, David Folkerts-Landau e Peter Garber descobriram, um tanto tardiamente, que a "globalização americana" dos anos 80 e 90 engendrou dois tipos de regiões: aquelas cuja inserção internacional se faz pelo comércio e pela atração do investimento direto destinado aos setores afetados pelo comércio internacional, as "trade account regions", e aquelas que buscaram sua integração mediante a abertura da conta de capitais, as "capital account regions".
Os países cuja estratégia é governada pelo saldo da balança comercial e pela acumulação de reservas "fecham o circuito" gasto-renda-poupança do "sistema americano" ao utilizar as poupanças em dólar para financiar o déficit em conta corrente dos EUA. Essa dependência recíproca impede que os países asiáticos orientem a aplicação de suas reservas por critérios privados de risco-rentabilidade. Garantem assim demanda pela moeda americana que assegura uma certa estabilidade nas taxas de câmbio de suas moedas em relação ao dólar.
A integração pelo comércio e pela atração do investimento direto -associada a uma política de proteção de taxa de câmbio real competitiva, mediante intervenções e controles sobre a conta de capital- constituiu-se em fator crucial para o sucesso do modelo asiático de crescimento acelerado e graduação tecnológica.
Por outro lado -como já apontamos há alguns meses em artigo publicado no jornal "Valor"-, a rápida industrialização da China e dos países do Sudeste Asiático está deslocando uma fração importante da demanda global para os produtores de matérias-primas e alimentos. A China ainda sustenta um saldo positivo muito elevado (mais de US$ 100 bilhões) com os EUA. Mas seu déficit é crescente com o resto da Ásia e com os demais parceiros comerciais. O bloco industrializado da Ásia, sobretudo a China, funcionaria como engrenagem de transmissão entre a demanda gerada nos países desenvolvidos (leia-se EUA) e as economias em desenvolvimento, como o Brasil, "exportadoras de recursos naturais".
Esse arranjo internacional não está a salvo de perturbações. Quanto à inflação, observamos a presença de forças que se movem em sentido contrário: de um lado, a tendência deflacionária dos preços dos produtos manufaturados, por conta do excesso de capacidade à escala global; de outro, a demanda chinesa e os juros baixos favorecendo a formação de posições especulativas altistas nos mercados de commodities.
Nos próximos dois anos é possível imaginar um auge sincronizado da economia mundial. Nesse caso também é provável uma subida nas taxas de inflação. A conjugação entre a ampliação da posição devedora líquida americana e a mudança do patamar inflacionário tornaria maior o risco de uma elevação pronunciada das taxas de juros de longo prazo -mesmo admitindo-se que os asiáticos estejam dispostos a absorver volumes crescentes de papéis em moeda americana, em processo de desvalorização.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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