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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Os déficits, o dólar e os emergentes
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
Em suas duas edições, o boletim "Política Econômica em
Foco", do Centro de Conjuntura
da Unicamp, procura desvendar
as razões dos desempenhos distintos das economias emergentes da
Ásia e da América Latina na era
da globalização.
Para estabelecer as diferenças
entre a inserção asiática e a latino-americana na economia global, é preciso, em primeiro lugar,
compreender a morfologia e a dinâmica do processo de internacionalização produtiva e financeira deflagrado a partir do começo dos anos 80, com a recuperação do dólar como moeda de
transações e de reserva do sistema
monetário internacional.
As transformações compreendem três movimentos simultâneos: 1) o avanço da internacionalização financeira, amparado,
primeiro, na dívida pública americana e, depois, no endividamento privado dos anos 90; 2) os rumos da reestruturação produtiva
mediante as fusões e aquisições e
o direcionamento dos fluxos de
investimento direto "estrangeiro"; 3) as mudanças importantes,
daí decorrentes, na divisão internacional do trabalho e nos padrões de comércio.
Nos anos 80, o déficit orçamentário do governo Reagan foi o responsável pelo crescimento rápido
do, até então, mais imponente déficit comercial, do pós-guerra. Já,
nos anos 90, a ampliação do déficit em conta corrente dos EUA foi
provocada por um forte crescimento do gasto e do endividamento privados. Nos dois momentos, é fundamental sublinhar,
a economia americana ganhou liberdade para adotar, primeiro,
política fiscal expansionista e, nos
anos 90, política monetária e de
crédito permissiva. Em ambas as
situações, o crescimento a taxas
elevadas foi caracterizado por expansão da demanda nominal a
ritmo bem superior ao exibido pela produção doméstica, bem como por crescimento da relação
endividamento total/PIB.
O ciclo dos anos 90 replicou com
intensidade maior o fenômeno
dos anos 80: a abertura das contas de capital do resto do mundo
propiciou ao mercado financeiro
dos EUA a oportunidade de comandar uma formidável expansão do crédito à produção e ao
consumo domésticos. A alavancagem das famílias e das grandes
empresas produtivas e o elevado
endividamento do setor financeiro americano são a contrapartida
do portentoso afluxo de capitais,
mobilizado a partir das posições
superavitárias em conta corrente
-acumuladas na Ásia e na Europa- e das saídas de recursos
dos países deficitários e devedores.
Durante os últimos 20 anos, a
política monetária americana
mostrou-se capaz de compatibilizar três objetivos: 1) administrar
as condições de liquidez doméstica nas etapas de expansão e de
contração dos dois ciclos; 2) garantir a resiliência do seu mercado financeiro ao conter a deflação
de ativos; e 3) preservar o papel do
dólar como moeda-reserva.
As transformações financeiras
foram acompanhadas de mudanças na estratégia global da concorrência entre as empresas dominantes, com implicações sobre
a natureza e a direção do investimento direto estrangeiro e do
progresso técnico. A metástase do
sistema empresarial da tríade desenvolvida -particularmente
EUA e Japão- determinou uma
impressionante ampliação dos
fluxos de comércio. Não se trata
apenas de reafirmar a importância crescente do comércio intrafirmas, mas de destacar o papel decisivo do "global sourcing", fenômeno que está presente, sobretudo, nas estratégias de deslocalização e de investimento que, nos
anos 90, beneficiaram as economias asiáticas, a China em particular. Os economistas Michael
Dooley, David Folkerts-Landau e
Peter Garber descobriram, um
tanto tardiamente, que a "globalização americana" dos anos 80 e
90 engendrou dois tipos de regiões: aquelas cuja inserção internacional se faz pelo comércio e
pela atração do investimento direto destinado aos setores afetados pelo comércio internacional,
as "trade account regions", e
aquelas que buscaram sua integração mediante a abertura da
conta de capitais, as "capital account regions".
Os países cuja estratégia é governada pelo saldo da balança
comercial e pela acumulação de
reservas "fecham o circuito" gasto-renda-poupança do "sistema
americano" ao utilizar as poupanças em dólar para financiar o
déficit em conta corrente dos
EUA. Essa dependência recíproca
impede que os países asiáticos
orientem a aplicação de suas reservas por critérios privados de
risco-rentabilidade. Garantem
assim demanda pela moeda americana que assegura uma certa estabilidade nas taxas de câmbio de
suas moedas em relação ao dólar.
A integração pelo comércio e
pela atração do investimento direto -associada a uma política
de proteção de taxa de câmbio
real competitiva, mediante intervenções e controles sobre a conta
de capital- constituiu-se em fator crucial para o sucesso do modelo asiático de crescimento acelerado e graduação tecnológica.
Por outro lado -como já apontamos há alguns meses em artigo
publicado no jornal "Valor"-, a
rápida industrialização da China
e dos países do Sudeste Asiático
está deslocando uma fração importante da demanda global para
os produtores de matérias-primas
e alimentos. A China ainda sustenta um saldo positivo muito elevado (mais de US$ 100 bilhões)
com os EUA. Mas seu déficit é
crescente com o resto da Ásia e
com os demais parceiros comerciais. O bloco industrializado da
Ásia, sobretudo a China, funcionaria como engrenagem de transmissão entre a demanda gerada
nos países desenvolvidos (leia-se
EUA) e as economias em desenvolvimento, como o Brasil, "exportadoras de recursos naturais".
Esse arranjo internacional não
está a salvo de perturbações.
Quanto à inflação, observamos a
presença de forças que se movem
em sentido contrário: de um lado,
a tendência deflacionária dos
preços dos produtos manufaturados, por conta do excesso de capacidade à escala global; de outro, a
demanda chinesa e os juros baixos favorecendo a formação de
posições especulativas altistas nos
mercados de commodities.
Nos próximos dois anos é possível imaginar um auge sincronizado da economia mundial. Nesse
caso também é provável uma subida nas taxas de inflação. A conjugação entre a ampliação da posição devedora líquida americana e a mudança do patamar inflacionário tornaria maior o risco
de uma elevação pronunciada
das taxas de juros de longo prazo
-mesmo admitindo-se que os
asiáticos estejam dispostos a absorver volumes crescentes de papéis em moeda americana, em
processo de desvalorização.
Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor
titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do
Ministério da Fazenda (governo Sarney) e
secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).
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