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OPINIÃO ECONÔMICA
Exportando empregos
RUBENS RICUPERO
Quem lembra ainda do
duelo entre Lula e Serra sobre emprego e os números extravagantes de postos de trabalho
então prometidos? Exceto no caso
do editorial da Folha "Resultado
medíocre" (Opinião, 18/2), o tema está largamente ausente do
debate público, fascinado, uma
vez mais, por escândalos políticos.
Pouco mudou desde Carlos Lacerda, 50 anos atrás. A obsessão
pequeno-burguesa com a corrupção monopoliza a atenção e dá o
tom das discussões. O problema é
real e legítima é a preocupação
em combatê-lo. O que se questiona é a desmesura, a desproporção, o desequilíbrio de um quadro
no qual a corrupção ocupa espaço
exclusivo, em contraste com a
triste resignação diante da decisão de persistir nos atuais juros
exagerados, no fatalismo de conformar-se com crescimento ainda
mais medíocre, talvez só de 2,5%.
Se a previsão anterior, de 3,5%, já
era insuficiente para absorver o
desemprego, o que esperar agora
senão o agravamento de condições intoleráveis de sofrimento e
frustração para milhões de conterrâneos nossos?
Não poderia ser maior a oposição entre essa baixa prioridade
do desemprego na agenda política brasileira e a centralidade que
ele ocupa em sociedades um pouco mais igualitárias e democráticas. É o que se vê tanto na União
Européia como nos EUA. O recente encontro entre Chirac, Schröder e Blair girou em torno do emprego, questão que ameaça a sobrevivência política dos líderes da
França e da Alemanha. As propostas de reformas emanadas da
reunião se concentram num ponto crucial: como acelerar o crescimento, a fim de eliminar o desemprego estrutural na Europa,
em véspera da pressão adicional a
ser criada pela adesão de dez novos membros, um dos quais a Polônia, com desemprego de 20%,
equivalente ao de São Paulo.
Na campanha presidencial
americana, a desocupação é,
mais que a Guerra do Iraque, a
ameaça principal à reeleição de
Bush. As maiores perdas de emprego nos EUA ocorreram em alguns poucos Estados industriais,
decisivos nas eleições, a maioria
no Meio-Oeste: Michigan, Ohio,
Wisconsin e Iowa. Nos quatro
anos do corrente governo, foram
destruídos 2,8 milhões de postos
na indústria, 16% do total. Em
comparação, na última recessão
(1990) e na lenta recuperação até
1993, 1 milhão de empregos tinham sido eliminados, só 5,8%
do total. Isso foi o bastante então
para derrotar Bush pai. Não é por
outro motivo que John Edwards
quase ganhou as primárias em
Wisconsin (71 mil empregos perdidos), saltando, em uma semana, de 6% a 34% do eleitorado
graças à denúncia da transferência de empregos para o estrangeiro.
A ligação entre comércio e desemprego é o fantasma que paira
hoje sobre o sistema comercial. Os
estragos são perceptíveis: o protecionismo no caso do aço, a lei
agrícola americana, o esvaziamento das negociações tanto da
Alca quanto da OMC, devido à
recusa de desmantelar a proteção
da agricultura na Europa, no Japão e nos EUA. Além do crescente
pessimismo acerca da chance de
liberalizar o comércio agrícola, o
perigo maior em potencial provém de um fenômeno novo, possibilitado pela revolução na tecnologia de informação e telecomunicações: o "outsourcing", isto é, a
transferência para outras empresas, no país ou no exterior ("offshoring"), do fornecimento à distância, pela internet, de serviços,
que vão dos mais simples -centros de atendimento telefônico,
trabalhos auxiliares de escritório- aos mais complexos -programas de software, consultoria,
análise, pesquisa e desenvolvimento. Na Europa, ocorre mais o
primeiro tipo, enquanto nos EUA,
sempre audacioso nas inovações
econômicas, está concentrado o
segundo.
O "outsourcing" apresenta duas
dimensões: a que afeta a indústria manufatureira e a que começa a se generalizar no domínio
dos serviços. Em relação aos empregos industriais, a luta para deter a "deslocalização" em direção
à China está praticamente perdida. As últimas estimativas do
Banco Mundial indicam que os
operários industriais chineses
custam 30 vezes mais barato que
os americanos! A amplitude do
movimento mostra que, além das
grandes transnacionais, hoje a
tendência de fabricar na China
muitos componentes dos produtos estendeu-se a milhares de pequenas firmas.
Havia, no entanto, um começo
de resignação com o inevitável na
área industrial, atenuado pela
percepção de que o que contava,
na realidade, era a economia de
serviços, setor no qual os ricos pareciam imbatíveis. Ora, essa tranqüilidade vê-se abalada quando
se comparam os custos do especialista em desenvolver software
nos EUA (US$ 60 a hora) com o
da Índia (US$ 6) ou o de um digitador de dados (US$ 20 contra
US$ 2). A consultora McKinsey
calcula que as reduções de custo
com a deslocalização em serviços
podem atingir entre 65% e 70%.
Ninguém pode prever exatamente quantos empregos serão perdidos, as estimativas variando de 6
milhões (Goldman Sachs) a 3,3
milhões até 2015 (Forrester). Em
termos globais, o "outsourcing"
em serviços representou, em 2003,
US$ 320 bilhões, projetando que
atingirá US$ 585 bilhões em 2005
e US$ 827 bilhões em 2008, crescendo à taxa anual de 14%. Desse
total, uma parcela crescente corresponde ao "offshoring", isto é,
as transferências para firmas estrangeiras de menor custo, que
devem aumentar 31% ao ano,
passando de US$ 52,4 bilhões em
2001 a US$ 346 bilhões em 2008.
Não é difícil entender, diante
dessas cifras explosivas, a ansiedade e o medo nos países desenvolvidos, onde os serviços respondem, em média, por quase 70%
da atividade e geram mais de dois
terços dos empregos. Nos EUA, a
campanha de persuasão, pressões
ou ameaças contra os deslocalizadores já levou ao cancelamento
de vários contratos com a Índia.
O principal assessor econômico
da Casa Branca foi obrigado a retratar-se depois de declarar que, a
longo prazo, o "outsourcing" seria um bem para a economia
americana. O Senado acaba agora de aprovar a primeira lei que
pune certos tipos de transferência
para o estrangeiro de serviços
prestados ao governo federal. Esses são apenas os sinais mais recentes do que o impulso para liberalizar o comércio enfrenta o teste
mais severo dos últimos 50 anos.
O ímpeto liberalizador vinha sobretudo dos EUA e, em grau menor, do Japão e dos europeus, ganhadores líquidos enquanto se
tratou de reduzir tarifas industriais. No momento em que os ganhadores potenciais, em exportações e empregos, passam a ser outros -o Brasil e a Argentina em
agricultura, a China na indústria
manufatureira, a Índia no "outsourcing" de serviços-, haverá
condições para manter o ritmo de
abertura do sistema comercial?
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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