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LUÍS NASSIF
A família musical
brasileira
O teatro do Sesc Vila Mariana, em São Paulo, já recebeu os maiores nomes da
música brasileira. Foi lá que
assisti, certa vez, João Gilberto
e seu violão, em um show com
oito músicas e 14 bis. A platéia
nem tinha forças mais para
aplaudir, mas o gênio se oferecia para o bis seguinte.
Mas o que assisti lá, no mês
de janeiro, foi daqueles shows a
serem preservados em seda e
veludo e guardados na parte
mais sensível da memória.
As estrelas eram uma família
inteira, pais, três filhos e três
netos se revezando no palco. O
fio condutor era a música brasileira de todos os tempos, uma
mistura de música de câmera e
de sarau caseiro. No centro do
espetáculo, os irmãos Sérgio e
Odair Assad, o maior duo violonístico da atualidade. Abaixo deles, Clarice, filha de Sérgio, uma pianista e compositora à altura da herança genética
-o pai é um compositor de peças para violão à altura de Egberto Gismonti-, e Carolina,
filha de Odair, uma voz linda,
de veludo, como uma crooner
dos tempos do samba-canção.
Compõe o grupo, ainda, a tia
Badi Assad e seu estilo overcult.
O que fizeram na primeira
metade do show foi de tirar o
fôlego de qualquer platéia do
planeta. Sérgio e Odair mesclam o virtuosismo da música
erudita com o conhecimento
do choro, herança de família.
Acabaram gerando a maior
inovação no modo de tocar
choro que ouvi nos últimos
anos.
Nos regionais é clássico o
contraponto entre o grave do
violão de sete cordas (com improvisos no bordão, as cordas
graves) e o agudo do cavaquinho (com seqüências de acordes ou arpejos). O que o duo faz
é trabalhar em cima desse contraste, Sérgio nos graves, Odair
nos agudos, tudo de forma sincronizada, uma elaboração
preciosa do que de mais singelo
e musical existe na família brasileira, como um quadro de
Portinari retratando as festas
do interior, ou o trabalho de
Villa-Lobos em suas Cirandas...
Os irmãos homens são calados, pouco falam para o público e de si. Vão dando o ritmo e
comandando as emoções da
platéia, música a música, acorde a acorde. E, quando se pensava que já se tinha chegado ao
auge da emoção, entram no
palco dona Ica e seu Jorge, os
culpados de tudo.
Foram eles que, quando perceberam o talento dos filhos
mais velhos, largaram tudo e
foram primeiro para São João
da Boa Vista, depois para o Rio
de Janeiro, atrás dos melhores
mestres.
Os dois irmãos correram o
mundo, um mora nos Estados
Unidos, outro na Bélgica, juntos têm uma agenda internacional repleta. Mas mantiveram íntegra a relação com os
pais, com o Brasil, com os botecos, com o mundo dos músicos
anônimos. Era só conferir a
maneira como eles -o maior
duo do mundo- aplaudiam
Alessandro, um gênio desconhecido, do nível de Yamandu
Costa, que se apresenta na noite paulistana.
Na metade seguinte do show,
irmãos e sobrinhos abriram
alas para a entrada no palco de
seu Jorge e dona Ica. Acompanharam o bandolim de seu Jorge e suas palhetadas seguras. E
acompanharam dona Ica.
Quando dona Ica soltou a
voz naquele teatro acusticamente preparado, cantando
"As Rosas Não Falam", de Cartola, o ambiente foi tomado de
uma emoção tão intensa que
poderia ser cortada a navalha.
Parecia a voz de Elisinha Coelho, a mais moderna das cantoras dos anos 30, ressuscitando na voz de dona Ica.
Foram muitos, mas muitos
minutos de aplausos, público
em pé. Na saída, Sérgio e Odair
não conseguiam falar, recebiam os cumprimentos apenas
e mostravam, nos olhos, a emoção de apresentar ao Brasil o
sarau da família Assad.
Neste momento, a família está em excursão pelos Estados
Unidos. Em cada lugar que
passarem, os americanos saberão que o Brasil não é o país do
bingo, da lavagem de dinheiro,
das contas CC5 e dos escândalos políticos. É o país onde ainda existem milhões de famílias
semelhantes, certamente não
tão musicais como os Assad,
mas que ainda se juntam em
torno do apego ao país e se
emocionam com a voz de uma
mãe cantando Cartola.
E-mail -
Luisnassif@uol.com.br
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