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OPINIÃO ECONÔMICA
Uma história de amor
RUBENS RICUPERO
Afinal, Tuni e Wladimir
Murtinho não terão estado
longe um do outro mais que cinco
meses. Tuni foi a primeira a partir, no início de julho, após doença que, durante mais de dez anos,
a diminuiu de forma implacável e
progressiva. Wladi apagou-se serenamente em Brasília, no dia 16,
ao ler os jornais, antes do trabalho diário no Ministério da Cultura, único privilégio que se oferecia aos 83 anos.
Ao contrário da chama de Vinícius, o amor deles é eterno, posto
que, na sua perfeição, já não pode
mais mudar, ficando para sempre
"intacto, suspenso no ar". Nem
por isso é menos infinito, pois foi
mais forte que tudo, mais que a
perda devastadora de um filho
pequeno e a enfermidade que
gradualmente encerrou a companheira numa distância silenciosa,
mas não foi capaz de fazer Wladi
desistir de tratá-la como se ela tivesse despertado do seu sonho.
Seria preciso falar deles apenas
no plural, de tal modo estiveram
confundidas suas vidas. É mais
fácil, no entanto, escrever sobre
Wladimir, pois Tuni era a face lunar, interior, recolhida, que não
oferece rugosidade onde possam
aderir as palavras. Wladi era homem de ação e mil projetos; deixou tanta coisa realizada que o
perigo, em seu caso, é perder-se no
inventário das coisas e esquecer o
espírito que animava o movimento.
Belos, ricos, elegantes, cultos, talentosos, tinham tudo para dispersar-se na frivolidade de uma
existência brilhante. Herdeira de
duas aristocracias paulistas, Tuni
cresceu com a avó, no casarão que
foi depois sede da Faculdade de
Arquitetura de São Paulo. Desenhista e gravadora, mais tarde
restauradora, suas obras, feitas de
encanto e sutileza, são raras, mas
quem as vê não esquece.
O pai de Wladimir, legendário
embaixador dos velhos tempos,
pertencia à família mato-grossense do ministro Joaquim Murtinho. Por parte da mãe, Wladi era
neto de don Mauro Fernández,
autor da reforma educacional
que transformou Costa Rica na
nação mais evoluída da América
Central.
A história de Wladimir é um romance de aventuras. Teve a infância errante de filho de diplomata. Apreendeu a velejar na Noruega, adquiriu em escola inglesa
o hábito de fazer ginástica ritmada com balizas, falava francês e
espanhol como línguas maternas.
A adolescência, passou-a no
Equador, onde o pai, num rompante de "panache", renunciou à
carreira diplomática sem ter um
centavo, a fim de tomar o partido
local no conflito com o Peru. Jovem, apresentou-se ao cônsul-geral em Nova York, pedindo para
ser repatriado. No velho navio do
Lóide, em troca de lições de francês, estudou português com um
dos oficiais, que lhe ensinou, como se fossem de uso diário, expressões do tipo de "fá-lo-ei, enviou-mo". Desembarcado no Rio,
aprovado no concurso do Itamaraty, transformou-se quando encontrou Tuni. Juntos viveram,
por quase 60 anos, uma história
de amor maravilhosa, no sentido
de "mirabilia", algo de inexplicável, milagre que se reinventa a cada manhã.
Como todo amor verdadeiro, o
deles foi aberto aos outros e atento ao trabalho e ao mundo. Ninguém fez tanto para difundir no
exterior a cultura brasileira; neles
tiveram origem incontáveis livros, álbuns, filmes sobre o Brasil,
sua arquitetura, Brasília, as artes,
a cultura popular. Trazem sua
marca memoráveis exposições como a Universal de Bruxelas, nos
anos 50, as co-edições do Instituto
do Livro, do qual Wladimir foi diretor, a série mais recente de "Intérpretes do Brasil".
O casal tinha a vocação de construir casas e grandes amizades,
estando sempre rodeado de arquitetos, mestres-de-obras, operários. Amigos de Lúcio Costa e Niemeyer, de Olavo Redig de Campos
e Alcides Rocha Miranda, de Bruno Giorgi, Burle Marx, Mary
Vieira, andavam constantemente
às voltas com iniciativas que se
superpunham, pois Wladi acreditava que era preciso lançar dez
projetos para ter a esperança de
realizar um. Estava, assim, predestinado a construir o Itamaraty
de Brasília, tarefa que lhe confiaram sem recursos, com a secreta
esperança de que não a levaria a
cabo. Era subestimar sua tenacidade e engenho: produziu orçamentos e créditos extraordinários, tirou dinheiro da pedra. Graças à complementação entre o gênio de Niemeyer e a energia esclarecida de Murtinho, conseguiu-se
criar o mais belo edifício de Brasília. A nova capital foi o seu "sonho intenso"; deu-se inteiro à cidade, da qual foi secretário de
Educação e um pouco de tudo.
Sobre ela, não admitia críticas
nem descrença. Não gostava,
aliás, de falar mal de ninguém,
não era homem para destruir ou
desprezar, sobretudo quando se
tratava do Brasil, do seu povo e
da cultura brasileira, que amou
profundamente, com a paixão e o
deslumbramento dos que só adultos descobriram a pátria.
Com esse espírito construtivo e
o olho seguro de arquitetos e jardineiros, Tuni e Wladi criaram à
beira do lago "la casa della vita"
por excelência. Nela, cada objeto
tinha uma história, um sentido,
um lugar único. Pintura ou escultura da Índia (onde foram embaixadores), imagens góticas,
santos portugueses, máscaras
africanas, obras de brasileiros famosos ou anônimos, harmonia
na diversidade. A casa, o jardim
que Tuni formou, com os beija-flores que alimentava, foram o
ponto de encontro para a fogueira de são João, a festa de fim de
ano, os almoços de sábado, da
gente mais bizarra e contrastante,
atraída pelo gosto da beleza e pela magia da amizade. Nunca pensamos que essa maravilhosa história de amor se acabasse, ou melhor, se transferisse a outra dimensão no tempo. Ver como Tuni
e Wladi viviam era reaprender a
viver a própria vida, a recriar-se
de novo, com valores melhores e
alma limpa.
Como dói, querido Wladi, saber
que já não estás aqui para ajudar-nos a tentar viver, a continuar a dar-nos lições de sabedoria, a afugentar essa tristeza sem
remédio, essa mágoa que sufoca.
Não gostavas de lamúrias nem de
auto-comiseração. Imagino, por
isso, que te pareceria bem fechar
esse comovido abraço de despedida com a nota de esperança dos
versos sem título escritos em 1932
por Fernando Pessoa, que dizem
assim:
"A morte é a curva da estrada.
Morrer é só não ser visto.
Se escuto, eu te ouço a passada.
Existir como eu existo.
A terra é feita de céu.
A mentira não tem ninho.
Nunca ninguém se perdeu.
Tudo é verdade e caminho".
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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