|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OPINIÃO ECONÔMICA
Explosões de desespero
RUBENS RICUPERO
Nenhum país é possivelmente mais diferente da Argentina do que o Equador. O Peru
não se parece em quase nada à
Venezuela. Nem esta última à Bolívia. Não obstante, todos eles conheceram recentemente episódios
similares de levantes de massa,
saques e violência espontânea.
Em exemplo nenhum se detectou
o dedo escondido dos quase extintos partidos comunistas, nem se
repetiram acusações à subversão
vinda de Cuba ou se suspeitou de
uma manipulação qualquer da
parte de movimentos guerrilheiros. Todos, sem exceção, gozavam
de governos eleitos em escrutínios
tão democráticos e livres quanto
podem ser nessas latitudes. Finalmente, quase todos, a Bolívia e a
Venezuela de 1990-91, a Argentina de Menem, o Peru de Fujimori, foram propostos, em algum
momento, à admiração universal
pela determinação com que teriam aplicado as chamadas "reformas" receitadas pela ortodoxia.
Como explicar a coincidência
de desastres parecidos em países
tão diferentes? Três fatores chamam a atenção em todas as autópsias: 1) o papel decisivo da dívida, das crises financeiras e da
dependência dos mercados externos, responsáveis na América Latina por 15 anos perdidos em 20;
2) a deterioração de nove pontos
percentuais na taxa de pobreza
da região, de 35% em 1982 para
44% em 2002, e de cinco pontos
na de indigência, de 15% a 20%
no mesmo período, resultado espantoso e provavelmente sem
precedente histórico; 3) a pior crise de emprego do continente em
30 anos, segundo o "Labour Outlook 2002", da OIT (Organização
Internacional do Trabalho).
De acordo com a Cepal, o desemprego passara de 8,4% em
2001 para 9,1% no ano seguinte, a
mais alta taxa jamais registrada.
A OIT calculava, para o desemprego urbano, 9,4% em março de
2002 e projetava para o ano o índice de 9,8% (no estudo "Globalización y trabajo decente en las
Américas"). Essa taxa equivalia a
cerca de 18 milhões de pessoas. A
deterioração começou em 1995
-não por acaso o ano da crise
mexicana e início da série de crises- e agravou continuamente a
taxa média, até então em torno
de 6%.
Na Argentina, o desemprego
saltara de 7,5% em 1990 para
17,4% em 2001 e era estimado em
21,5% nos primeiros nove meses
de 2002. Para os demais países
onde se acentuaram as perturbações, os índices pioraram sempre,
entre 1990 e 2001, na Bolívia, de
7,2% a 8,5%; no Equador, de
6,1% para 10,4%; no Peru, de
8,3% a 9,2%; na Venezuela, de
11% a 13,5%, com projeção para
15,5% até setembro de 2002
("Global Employment Trends",
ILO, www.ilo.org/inform).
No continente, o desemprego
urbano para as mulheres era 45%
superior ao dos homens e o dos jovens atingia quase o dobro. Retrato de uma semidécada perdida: em 1990, 63 milhões de trabalhadores urbanos, 45% da população economicamente ativa, não
tinha emprego decente. Em 2002,
essa cifra chegara a 93 milhões,
ou 50,5% da população. O pior é
que 7 de cada 10 empregos criados
nesse período se localizam no setor informal, no qual apenas dois
de cada dez empregados têm
acesso a benefícios sociais. A desocupação não só cresce fisicamente
mas é acompanhada por maior
vulnerabilidade social e privação
de direitos trabalhistas.
O "Panorama Social" da Cepal
de 2001-02 assinala que mesmo os
sinais encorajadores, os indicadores que justificam a esperança no
longo prazo, são neutralizados
pelo crescimento anêmico. Esse é
o caso do salto impressionante,
entre 1990 e 1999, no número de
profissionais e técnicos qualificados. De um aumento de 32 milhões de indivíduos com idade de
trabalhar, quase 8 milhões possuíam qualificação além do secundário. Sem embargo, até essa
categoria mais "empregável" tem
sido subutilizada ou desperdiçada devido ao déficit de crescimento. Entre o começo e o fim da década de 1990, não só se agravou a
desocupação dos menos qualificados como igualmente a dos técnicos e profissionais, para os
quais a taxa se elevou de 3,8% para 6,6%.
Já perdi a conta das vezes em
que tomei um táxi no Brasil para
descobrir que o motorista possuía
curso superior. É o que diz em linguagem técnica o "Panorama Social" da Cepal: no Brasil e no México, chega a mais da metade
(58%) a porcentagem de técnicos
e profissionais que trabalham no
comércio ou em serviços pessoais
(como táxis). De um total de 19
milhões da categoria, 4,5 milhões
não conseguem trabalhar em
suas especialidades. Um milhão
está desempregado. O restante
trabalha em empregos com salários mais baixos do que se justificaria "com o investimento feito
em sua educação, representando
assim séria perda tanto ao nível
individual como coletivo".
A explicação é que as economias da região não crescem o bastante para criar empregos que absorvam a rápida expansão na
oferta de profissionais e técnicos
(a baixa qualidade do ensino
também influi). Vê-se pelo exemplo que a educação não é, por si
só, panacéia para superar o subdesenvolvimento. Já deveríamos
ter aprendido na radicalização
dos anos 60 e 70 que, se não houver política macroeconômica capaz de impulsionar o crescimento
e gerar emprego, a educação superior vai apenas produzir legiões
de frustrados como os que engrossaram os movimentos guerrilheiros na Argentina e no Uruguai. A
diferença é que, hoje, em lugar de
pegar em armas, eles pegam o primeiro avião para levar aos EUA,
ao Canadá, à Austrália seus talentos e o investimento efetuado.
Ao apresentar em Lima o documento da OIT, o diretor-geral da
organização, o chileno Juan Somavia, aludiu aos acontecimentos na Argentina e comentou que
estávamos diante de populações
desesperadas diante da situação
de párias da globalização a que
tinham chegado. Se a situação
não for invertida, haverá explosões de pobreza, fome e desespero,
que ameaçarão a estabilidade política, pondo em perigo a capacidade das sociedades latino-americanas de preservar uma coexistência democrática. Longe de ser
alarmista, meu amigo Somavia
foi até moderado. Vendo o que se
passa na Venezuela, na Colômbia, na Bolívia, não há como negar que as explosões já começaram e vão continuar. A dúvida é
uma só: quem será o próximo?
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
Texto Anterior: Tendências internacionais: Pós-consenso de Washington vê além da meta fiscal Próximo Texto: Lições contemporâneas: A opção pelo desenvolvimento Índice
|