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ARTIGO
Ásia paga a conta da guerra e assegura crescimento dos EUA
MARTIN WOLF
Os EUA são a maior potência e o maior devedor do
mundo. Essa posição permite que
o país empregue suas forças militares e continue consumindo. O
déficit norte-americano em conta
corrente é quase 50% maior do
que os gastos do país com defesa.
A questão é determinar se essa
combinação deveria preocupar os
norte-americanos. A resposta é
sim. Uma queda sustentada do
dólar, acompanhada de uma redução na capacidade dos EUA para manter um grande déficit externo, tornaria esse papel, se bem
que viável, mais dispendioso.
Sob suposições plausíveis, o
passivo líquido dos EUA poderia
aumentar de 20% do PIB (Produto Interno Bruto), em 2001, para
mais de dois terços, no final da década. O déficit em conta corrente
poderia subir de 5% do PIB para
9%. Mas caso essas tendências sejam revertidas, a escolha entre o
consumo e os gastos militares iria
se tornar dolorosa.
Considerem, por exemplo, o
custo da eventual guerra contra o
Iraque. William Nordhaus, da
Universidade Yale (EUA), estima
o custo direto de uma guerra entre US$ 50 bilhões e US$ 140 bilhões. A isso acrescenta possíveis
custos de ocupação e de manutenção da paz (entre US$ 75 bilhões e US$ 500 bilhões), reconstrução e institucionalização nacional (entre US$ 30 bilhões e US$
105 bilhões) e assistência humanitária (entre US$ 1 bilhão e US$ 10
bilhões). Os custos totais portanto, ficariam entre US$ 156 bilhões
e US$ 755 bilhões, em um período
de dez anos.
Custos dolorosos
Na Guerra do Golfo, em 1991,
outros países bancaram os custos
diretos do conflito. Na prática, o
resto do mundo contratou os
EUA como mercenários. Agora,
isso é muito menos provável. Se
os EUA forem à guerra sem uma
segunda resolução das Nações
Unidas, quase todo o custo terminaria por ser transferido aos contribuintes norte-americanos. A
combinação de um dólar consideravelmente mais fraco e um déficit em conta corrente em alta
tornaria esses custos mais dolorosos, ao impor custos mais altos
em dólar no exterior e uma compressão nos gastos domésticos.
Determinar se isso acontecerá
depende do apetite do restante do
mundo pelos ativos norte-americanos. Isso, por sua vez, depende
em larga medida da Ásia. São os
asiáticos, e não os EUA, que têm
uma política de "dólar forte", porque são eles que têm a capacidade
e a vontade de evitar uma queda
do dólar em relação a suas moedas. Indiretamente, o resto do
mundo ainda paga pelo exercício
de poder norte-americano.
Desequilíbrios
Em 2002, de acordo com a Consensus Forecasts, os EUA acumularam um déficit de US$ 498 bilhões em conta corrente. Enquanto isso, a região Ásia-Pacífico teve
superávit de US$ 204 bilhões, com
contribuição, principalmente, do
Japão (US$ 113 bilhões), Taiwan e
China (com US$ 21 bilhões cada),
Cingapura (US$ 20 bilhões) e
Hong Kong (US$ 17 bilhões).
A Europa ocidental registrou
um superávit de US$ 115 bilhões,
US$ 45 bilhões na zona do euro,
enquanto o superávit da Europa
oriental foi de US$ 8 bilhões. A
América Latina registrou um déficit de US$ 15 bilhões, e os demais
países tiveram superávit agregado
de US$ 1 bilhão.
É preciso ressaltar que esses números não batem. Isso não se deve a países excluídos do cálculo,
mas sim ao bem conhecido buraco negro no balanço mundial de
pagamentos.
A explicação para isso são exportações subfaturadas, importações superfaturadas e as fugas de
capital associadas a essas práticas,
especialmente nas economias de
mercado emergente. A situação
reforça ainda mais a suposição de
que a Ásia é a maior fonte de financiamento dos EUA.
O quadro sobre as contas correntes é reforçado pelos números
das reservas oficiais em moeda estrangeira. No final do terceiro trimestre do ano passado, o total das
reservas mundiais eram de US$
2,294 trilhões, 73% em dólares.
Cerca de 58% dessas reservas estavam sob o controle de governos
asiáticos. O Japão, sozinho, detinha 19,3% do total, enquanto a
China continental tinha outros
11,3%.
Defesa da moeda
As somas são espantosas. As reservas japonesas eram de US$
443,1 bilhões, as da China continental, de US$ 258,8 bilhões, e o
total chinês, de US$ 526,8 bilhões.
A participação das economias
asiáticas na ampliação das reservas era ainda mais importante.
Entre o final de 1997 e o final do
terceiro trimestre do ano passado,
as reservas cambiais japonesas
aumentaram US$ 194 bilhões, enquanto as do resto da Ásia cresceram US$ 304 bilhões. Juntas, as
economias asiáticas responderam
por virtualmente toda a elevação
nas reservas cambiais do período.
Duas forças explicam essa grande elevação nas reservas cambiais.
Uma são os superávits em conta
corrente. A outra é a reciclagem
de investimento interno. O objetivo é preservar a competitividade
das exportações, um fenômeno
definido como "protecionismo
cambial" pelo economista australiano Max Corden.
Simbiose financeira
Os asiáticos fornecem produtos
em troca de vales depreciáveis denominados na moeda do devedor. Trata-se de uma relação simbiótica, mas inerentemente instável. Dois outros motivos também
estão em ação.
No caso do Japão, o objetivo era
minimizar a pressão deflacionária. No caso das economias asiáticas atingidas pela crise, era a redução de vulnerabilidade externa.
A Coréia do Sul, por exemplo,
acumulou US$ 87 bilhões em reservas entre 1997 e o final do terceiro trimestre do ano passado.
Essas aquisições oficiais de divisas são cruciais. Nos três primeiros trimestres de 2002, as aquisições estrangeiras privadas de ativos norte-americanos atingiram o
nível anualizado de US$ 536 bilhões, uma queda de US$ 442 bilhões ante 2000. A saída de capitais privados dos EUA também
caiu US$ 431 bilhões.
Já que o déficit em conta corrente norte-americano vem subindo,
de US$ 410 bilhões, em 2000, para
perto de US$ 500 bilhões, as aquisições de passivos norte-americanos fizeram a diferença. Elas aumentaram de US$ 38 bilhões, em
2000, para um total anualizado de
US$ 86 bilhões, nos três primeiros
trimestres de 2002. Sem o protecionismo cambial do resto do
mundo, o dólar teria caído consideravelmente mais do que o fez.
Apetite de dólares
Isso pode durar? Sim, desde que
não haja limites à disposição do
resto do mundo de acumular posições nos EUA a taxas de câmbio
próximas às atuais. Mas é provável que isso exija aumentos ainda
maiores nas aquisições de passivos norte-americanos feitas por
outros países. Isso seria realizado
principalmente por mercantilistas asiáticos.
Em nota recente, o economista
internacional norte-americano
David Hale, da Zurich Financial
Services, argumenta que as reservas do Japão podem chegar a US$
1 trilhão em 2010. Se os asiáticos
continuarem comprando dólares,
boa parte da pressão de ajuste se
fará sentir, por bem ou por mal,
na zona do euro.
Em assuntos militares, os EUA
podem ser unilaterais. Mas o
mundo da economia é intrinsecamente multilateral. As pessoas
que dirigem a única superpotência mundial fariam bem em relembrar esse fato potencialmente
doloroso.
Martin Wolf, economista, é colunista do
"Financial Times"
Tradução de Paulo Migliacci
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