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LUÍS NASSIF
A esquerda que era festiva
Outro dia soube de um documentário sobre as lideranças estudantis de 1968. Aquela
época foi curiosa. A grande imprensa havia descoberto e glamourizado o movimento estudantil. As lideranças se tornaram
personagens nacionais por meio
das páginas das revistas "Realidade" e "Veja", principalmente
depois das passeatas de 1968 em
Paris. Os estudantes viraram a
bola da vez da mídia e ganharam
reportagens consagradoras.
Lá do interior a gente ia acompanhando as movimentações, tomando posições e sendo informado sobre quem era quem pela minha prima Rosa Maria, que deu
uma dor de cabeça danada para
a família mesmo antes de ser presa em Ibiúna, no famoso congresso da UNE que começou em um
sítio e terminou no presídio.
Um ano antes ocorreu o congresso nacional na PUC-São Paulo, nem me lembro se era da UNE
ou da Ubes (União Brasileira dos
Estudantes Secundaristas). A Rosa estudava filosofia na Fafi, em
Poços, mas era suficientemente
cara-de-pau para se entrosar com
o movimento estudantil de Belo
Horizonte. E a família, suficientemente imprudente para abrigar a
delegação inteira de Minas, que
fez parada em Poços e dormiu na
casa do tio Léo antes de seguir para São Paulo.
A cidade vazia, antes do início
da temporada, e aquela multidão
de jovens estudantes descendo
para fazer o "footing" na praça,
todos dando a maior bandeira,
mas com ordens expressas para
não informar a ninguém que estavam a caminho do congresso. E
precisava, com aqueles óculos escuros às oito da noite e aquelas
boinas com estrela, que nem a do
Che Guevara?
O mais assentado era o Edgard
da Matta Machado, que preferia
ficar lendo na casa do tio Léo ou
nos acompanhando nas cantorias, em vez de descer para a praça. Morreu alguns anos depois,
torturado em Recife.
Em São Paulo, a liderança do
movimento era dividida entre o
Luiz Travassos, mais radical -e
que morreu alguns anos atrás- e
o Zé Dirceu. O nosso grupo, em
Poços, considerava o Dirceu muito moderado.
No Rio, havia o Wladimir Palmeira, outra liderança relevante.
E uma constelação de nomes que
chegavam aos nossos ouvidos como novos popstars, como Catarina Meloni, Verinha Brisola, em
São Paulo, o Jean Marc no Rio e
outros. A nosso pedido, a Rosa ia
mapeando quem era quem no
movimento.
Uma vez fui com meu pai a Casa Branca, em um festival de música, e paramos para comer em
uma lanchonete de um amigo dele. O velho me disse: "É o pai da
"maçã dourada'". A "maçã" era
uma espiã do Dops que andou encantando o fogoso Zé Dirceu na
época. Descoberta, acho que passou algum tempo detida no Crusp
-o prédio de apartamentos dos
estudantes da USP. Nem me lembro se era bonita ou não, mas se
tornou nossa Mata Hari de Casa
Branca.
Só cheguei a São Paulo em 1970,
quando o romantismo voluntarista dos jovens de classe média tinha derivado para a guerrilha. Os
que vieram antes andaram se encrencando com o Dops. Especialmente o Netinho, que foi para Belo Horizonte fazer economia e,
pelas histórias que chegaram a
Poços, encarou um policial em
uma passeata, colocando a testa
no cano do revólver e desafiando-o para que atirasse. Baixinho, e
brabo, nem precisava se agachar
para a testa ficar no nível do revólver.
Em Poços, o Netinho tinha uma
rixa danada com o Zé Baixinho
-que, depois, se mudou para
Brasília. É gozado como essas
questões de adolescência ficam
para sempre na nossa imaginação. Preso em Belo Horizonte, assistiu da cadeia a morte da mãe.
Conseguiu liberdade provisória
para acompanhar o funeral do
pai. Fugiu, foi recapturado, preso
de novo, sem jamais perder a garra.
Logo que foi libertado, muitos
anos depois, aqui em São Paulo,
um dia o peguei na casa em que
estava hospedado e o levei para
jantar na minha. No meio do caminho ele se mostrou exultante:
"Quero ver o Zé Roberto, agora,
vir me acusar de ser esquerda festiva".
De jeito nenhum. A luta armada, as prisões, as torturas, já tinham sepultado há muito a festividade romântica dos primeiros
passos do movimento e os sonhos
ingênuos de nossa geração.
E-mail - Luisnassif@uol.com.br
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