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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
O poder americano depois de 1914
MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
A guerra de 1914/19 promoveu mudanças radicais nos
mapas da Europa e do Oriente
Médio, cujos efeitos se fazem sentir até hoje, e marcou também a
entrada em cena de um novo poder mundial: os Estados Unidos
compareceram às negociações da
Paz de Versailles como poder arbitral.
Os novos Estados-nações da Europa Central foram praticamente
desenhados a bico-de-pena pelas
três grandes potências com apoio
simbólico na doutrina da "autodeterminação dos povos" do presidente Wilson. Curiosamente a
doutrina não se aplicou ao mundo colonial. As colônias alemãs
foram apenas remanejadas e a
reivindicação da China para retomar a Província de Shantung,
ocupada primeiro pelos alemães e
depois pelos japoneses, não foi
atendida. O Japão foi confirmado
como potência imperial da Ásia e
os impérios britânico e francês ficaram intocados e avançaram sobre o Oriente Médio. As reparações de guerra cobradas da Alemanha, a destruição do equilíbrio de poder europeu e a dominação do Japão no leste da Ásia
levaram, 20 anos depois, a uma
nova guerra mundial entre as
grandes potências.
Os EUA emergiram da Segunda
Guerra Mundial claramente como a nova potência hegemônica
do mundo capitalista. O poder soviético, por sua vez, tinha-se expandido durante a guerra até
Berlim (com o acordo de Roosevelt e a oposição de Churchil), o
que, em pouco tempo, levou à
Guerra Fria. A Alemanha Ocidental foi rapidamente reconstruída com apoio americano,
transformando-se no primeiro
milagre econômico europeu. O
mesmo ocorreu na Ásia com o Japão, Taiwan e Coréia do Sul depois da vitória da Revolução Chinesa. A geopolítica na Europa ficou praticamente congelada até a
implosão da URSS e da Iugoslávia, continuou ativa na Ásia até a
derrota no Vietnã e manteve-se
num impasse no Oriente Médio.
Enquanto os conflitos geopolíticos reais e potenciais continuam
concentrados nas fronteiras movediças da Eurásia, a geoeconomia global, sob a égide do capital
financeiro americano, tomou
uma direção diferente deslocando-se para o extremo oriente. A
partir da década de 70, sobretudo
depois do desastre do Vietnã, a
diplomacia americana na Ásia
concentrou-se nos aspectos econômicos e financeiros. O processo
de globalização comandado pelos
EUA, através da liberalização comercial e financeira e do investimento direto, avançou rapidamente na década de 90, abarcando a velha Ásia ressurgente.
O "objeto do desejo" do Ocidente continua sendo a China, como
nos tempos do veneziano Marco
Pólo no começo da modernidade
mediterrânica. As zonas especiais
de exportação começaram pelos
mesmos portos ocupados no século 19 pelas grandes potências imperiais. Não se trata, porém, de
uma ocupação bélica ou colonial,
mas de aplicação das velhas teses
da "abertura dos portos" ao livre-comércio e ao movimento de capitais, hoje expressas na OMC
(Organização Mundial do Comércio). Naturalmente o governo
chinês, mesmo depois das reformas liberais, manteve o controle
de câmbio e resiste à abertura de
sua conta de capitais, o que não a
impede de ser a maior absorvedora de investimento direto das filiais globais.
A posição chinesa na economia
mundial melhorou rapidamente
a partir de uma alta taxa de crescimento interno, de absorção de
investimentos diretos estrangeiros (IDE) e de crescimento das exportações que se manteve a mais
estável e vigorosa desde 1970 em
relação ao resto do mundo, antes
mesmo das reformas liberais. É o
segundo maior absorvedor de investimento direto depois dos EUA
e mantém com este país uma relação especial de competição e complementaridade. Ao contrário do
Japão, que não contou com uma
importante absorção externa de
capitais e se mantém até hoje como país credor dos EUA, a China
é simultaneamente devedora (pelo IDE) e credora (pelas enormes
reservas em dólar aplicadas em
títulos do Tesouro norte-americano).
Qualquer diminuição acentuada no comércio e no investimento
da China afetaria dramaticamente a economia do leste asiático -do qual a expansão chinesa
é hoje o principal motor- e poderia provocar um "infarto" numa das artérias mais importantes
da globalização americana. A
pressão exercida por expoentes do
poder americano para punir o sistema de proteção chinês e diminuir seu superávit parece uma vez
mais o cacoete protecionista para
dentro e liberal para fora em que
as lideranças americanas recaem
periodicamente. Pode tratar-se
também de uma manobra de
"real politik" apoiada pelo Japão
para obter maiores concessões da
China e manter o "equilíbrio de
poder" na Ásia. O governo chinês
resiste e, além de manter alta a
taxa de investimento para expandir seu mercado interno, está iniciando uma ofensiva para investir no exterior em países provedores de recursos naturais, buscando uma inserção internacional
mais ampla que o libere do seu dilema secular -fechar-se no seu
imenso espaço territorial ou ficar
à mercê do jogo das grandes potências.
No começo do século 21 está
configurada uma nova anatomia
da globalização: o cérebro é o poder de contenção e controle geopolítico da superpotência hegemônica, o coração é a sua gigantesca economia continental e o
pulmão por onde a globalização
americana respira e se expande é
a China. A velha Europa, até há
pouco uma fortaleza mercantil
que incluía apenas 12 países,
mantém-se em crescimento lento
e aparece hoje como um enorme
estômago às voltas com a digestão
dos problemas acumulados desde
a paz de 1919 na sua "fronteira
oriental". A África tornou-se um
continente em desagregação pelo
fracasso da descolonização. A
América Latina continua uma
zona endividada de baixo crescimento. A Rússia, depois do desmantelamento do Império, ficou
isolada e economicamente depauperada, embora continue sendo uma grande potência militar.
A maior zona de instabilidade
econômica (o petróleo) e política
(guerras sucessivas) continua
sendo o Oriente Médio, onde o sonho wilsoniano da paz universal
e da autodeterminação dos povos
se tornou um pesadelo.
Maria da Conceição Tavares, 74, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
professora associada da Universidade de
Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet: www.abordo.com.br/mctavares
E-mail - mctavares@abordo.com.br
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