|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OPINIÃO ECONÔMICA
Greta Garbo às avessas
RUBENS RICUPERO
Na fase mais ideológica do
regime militar, quando a diplomacia brasileira parecia comprazer-se em defender solitariamente na ONU causas ingratas
como o colonialismo salazarista,
o saudoso embaixador Araújo
Castro dizia que o Brasil sofria do
"complexo de Greta Garbo": "I
want to be alone" ("Quero ficar
sozinha"). Tem-se hoje a impressão de que saltamos de um complexo ao seu oposto e passamos a
sofrer da fobia do isolamento.
Não me compreendam mal.
Não quero insinuar que a solidão
seja um estado desejável na vida
dos indivíduos ou das nações. Ao
contrário, é princípio fundamental de qualquer diplomacia procurar sempre evitar o cerco de
alianças hostis ou da marginalização em relação a esquemas de
cooperação comercial e econômica. Nesse sentido, iniciativas como o Mercosul ou a integração
energética e física da América do
Sul conservam inteira validade e
devem continuar a ser desenvolvidas em todo o seu potencial.
Em alguns casos, porém, o isolamento pode mostrar-se até certo
ponto inevitável por decorrer de
diferenças objetivas de uma situação única, não-compartilhada pelas demais. Foi essa a condição do Brasil na maior parte do
século 19, quando éramos monarquia solitária cercada de repúblicas por todos os lados. Tal circunstância, acentuada pela insularidade do português num oceano castelhano, está talvez na raiz
dessa fobia do isolamento que se
refugia no inconsciente coletivo
brasileiro, para subir à tona em
dilemas como o da Alca.
Sempre me impressionou, de fato, que ninguém entre nós, mesmo no setor oficial, tivesse sido capaz de demonstrar de modo objetivo e convincente as razões positivas, os ganhos plausíveis e realistas que teríamos para aderir à
Alca. Não digo que essas razões
não existam, mas nunca as vi articuladas de maneira persuasiva.
O que se vê, ao contrário, de público e ainda mais em privado,
quando se conversa com os negociadores, é uma atitude basicamente negativa, defensiva. O argumento mais usual é que não
podemos ficar de fora porque os
demais tendem a entrar, quaisquer sejam as condições finais. Se
dissermos não, afirma-se que,
além de consequências políticas
não-explicitadas, seríamos alijados do mercado dos EUA pela
concorrência dos outros latino-americanos, ao mesmo tempo em
que a indústria norte-americana
substituiria os manufaturados
brasileiros nos mercados desses
últimos.
É possível que isso seja verdade,
mas existe acaso algum estudo
que o comprove? Há mais de um
ano, ao publicar o artigo "Pensando o impensável" (18/03/01),
eu reclamava a necessidade de tal
estudo. Perdemos mais 15 meses e,
ao que me consta, continuamos a
tocar de ouvido. Por que não
aproveitar o setor do comércio exterior do Ipea para criar força-tarefa incumbida de efetuar, em
seis meses, o melhor levantamento possível, dentro desse prazo,
das implicações das diferentes opções? Sei que pesquisas e projeções
possuem valor relativo, mas são
sempre superiores ao puro subjetivismo do palpite. Por razões que
não posso expor hoje por falta de
espaço, penso que uma investigação desse tipo concluiria provavelmente que o temor tem alguma procedência, mas deve ser relativizado. De qualquer forma, só
estudos e dados concretos poderão dar consistência a seminários
que proliferam sem aportar qualquer valor adicional, pois se limitam a generalidades ou debates
ideológicos.
Ao expressar ceticismo em relação ao argumento terrorista da
inevitabilidade da Alca, não me
inspira alguma posição definitiva
e preconceituosa qualquer contra
a proposta, o que não é o meu caso. Desejo sinceramente que as
negociações em curso possam culminar em resultados benéficos
menos desequilibrados para nós.
Para isso, seria indispensável que
a postura norte-americana sofresse modificações consideráveis
no sentido positivo, e o que se tem
visto infelizmente são mudanças
graves na pior direção possível. Se
isso persistir e conduzir a conclusões indesejáveis, parece-me inconcebível ver o Brasil reduzido a
sacrificar interesses vitais legítimos devido ao desejo compreensível de evitar o isolamento a todo
custo. Esperemos que não se chegue a esse ponto, mas convém não
esquecer que as condições dos demais latino-americanos só coincidem com as nossas parcialmente.
A excepcionalidade brasileira
não é apenas coisa do passado.
Hoje como ontem, nenhum dos
outros tem território de dimensão
continental, população capaz de
criar um gigantesco mercado nacional e estrutura produtiva relativamente ampla e integrada.
Não vejo por que essas características, que nos tornam exemplo
único no continente, devam necessariamente ser consideradas
como defeito, e não como vantagem, nas negociações.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
Texto Anterior: Painel S.A. Próximo Texto: Tendências Internacionais: Sistema global opera sem modelo único de ajuste fiscal Índice
|