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ENTREVISTA DA 2ª
PAUL ROBERTS
Biocombustíveis trocam um problema por outro
Para especialista em energia, não faz sentido resolver o problema do petróleo, que é um recurso limitado, por terra, que é outro recurso limitado
NÃO BASTA substituir uma matriz por outra, mas diversificar. Não adianta resolver só do ponto de vista de oferta, trocando gasolina por álcool, mas também de distribuição, que é arcaica, e de demanda, que não pode continuar no nível atual. É o que defende o autor americano dos livros "The End Of Oil" ("O Fim do Petróleo") e "The End of Food" ("O Fim do Alimento").
SÉRGIO DÁVILA
DE WASHINGTON
Seu primeiro livro falava da
crise energética. O atual fala da
crise alimentar. Nos quatro
anos que os separam, um assunto ficou intimamente ligado
ao outro. A alta do petróleo ajudou a elevar os preços dos alimentos. Agora, Paul Roberts vê
com preocupação o caso brasileiro, em que biocombustíveis
como o álcool são tratados como a solução para o primeiro
problema.
"Não me parece muito inteligente destinar cada vez mais
terras para essa produção enquanto não sabemos com certeza qual será a demanda futura por alimentos", disse, em entrevista à Folha, por telefone,
do Estado de Washington, onde mora com a mulher.
O jornalista investigativo de
54 anos defende uma mudança
de hábitos dos consumidores.
"Não adianta falarmos que
queremos que o governo, a
ONU, seja quem for, resolva o
problema, desde que nós possamos continuar tendo 2,5 carros, como é a média atual nos
Estados Unidos."
FOLHA - "O Fim do Petróleo", título
do seu primeiro livro, levará ao fim
da alimentação, título do segundo?
PAUL ROBERTS - A crise energética sublinhou o papel central
que a energia tem na produção
de alimentos. Nós deveríamos
saber já há tempos que energia
e alimentação são intimamente
ligadas e a crise de uma levaria
à outra. Isso porque nossa estrutura alimentar foi pensada
para um mundo em que o barril
do petróleo custa US$ 15 [na última semana, bateu os US$ 140,
ante US$ 10 há uma década].
Pense bem, todo o sistema de
fertilizantes baseados em petróleo, o sistema de distribuição baseado em caminhões e
aviões, tudo depende pesadamente do combustível fóssil. A
origem disso tudo é uma época
em que a energia era tão barata
que quase não era levada em
conta na equação.
Só isso já seria o suficiente
para fazer a ligação entre as
duas crises. Mas há ainda o caso
recente dos programas de biocombustíveis, um novo dado na
equação alimento-energia. Eles
colocam mais pressão no setor
de alimentação, pois ambos são
feitos de maneira semelhante.
Ou seja, antes nós ligávamos a
alimentação, que é o setor mais
importante do mundo, a uma
mercadoria, o petróleo, que estava destinada fatalmente a subir de preço, pelo fato de ser um
recurso que acabará um dia.
Agora, estamos substituindo
por outro, o biocombustível,
que briga por espaço com a própria produção de alimentos.
FOLHA - Em sua opinião, não faz
sentido?
ROBERTS - Do ponto de vista de
segurança alimentar, não, nenhum. Você troca um sistema
que se baseia numa fonte limitada, que é o petróleo, por outro, de outra fonte limitada, que
é a terra arável. Uma hora os
dois acabam. O biocombustível
pelo menos torna o problema
mais evidente, por ser visível.
Quando você vê uma plantação
de cana, ela está lá, ocupando
espaço. Você é obrigado a enfrentá-lo, a pensar a respeito. O
petróleo vem do fundo da terra
e do mar, oculto. Do ponto de
vista do público parece que
vem de fonte inesgotável. É óbvio que acabará, mas não é tão
visível.
FOLHA - Qual a solução, então? Há
uma "terceira via"?
ROBERTS - Há todo tipo de possibilidades tecnológicas sendo
pesquisadas neste momento,
algumas que eu e você não podemos nem imaginar. Dá para
presumir que a inovação vai
continuar, principalmente
quanto mais os preços subirem,
historicamente o melhor estímulo intelectual. Veremos
energia nuclear mais segura e
barata, algas oceânicas que
criem biocombustível de maneira sustentável, estamos próximos de anúncios históricos.
Mas, se a atual crise nos ensina
algo, é que não bastará substituir uma matriz por outra, e
sim diversificar. Mais: não
adianta resolver só do ponto de
vista de oferta, trocando gasolina por álcool, por exemplo, mas
também de demanda, que não
pode continuar no nível atual.
FOLHA - A produção de biocombustíveis diante da crise alimentar
domina as discussões. No Brasil, o
governo defende que as terras destinadas ao álcool ocupam perto de 2%
do total que pode ser utilizado para
alimentos. Já o relator especial da
ONU sobre o assunto pede moratória de etanol. Qual o seu lado?
ROBERTS - Quando se fala que a
terra ocupada para o biocombustível é pequena, eu pergunto: não é terra que poderia estar
produzindo alimento? Ou é onde o dinheiro está? Quero ser
cuidadoso nesse debate, mas
não me parece muito inteligente destinar cada vez mais terras
para a produção de biocombustíveis enquanto você não sabe
com certeza qual será a demanda futura por alimentos. As
pessoas dizem: "Bem, nós sempre podemos mudar de volta a
exploração da terra para a produção de alimentos". Sim, mas
depois que você constrói usinas
ao lado dessas terras, investe
bilhões de dólares na infra-estrutura para escoamento da
produção, é extremamente difícil mudar. Há a demanda criada, a pressão política...
FOLHA - É possível reprimir a demanda por combustíveis, seja da
origem que forem, sem comprometer o desenvolvimento de países
emergentes, por exemplo?
ROBERTS - Essa é a pergunta de
US$ 40 trilhões [risos]. É difícil,
no quadro atual de desenvolvimento econômico. Mas, do jeito que está, caminhamos para o
desastre. Faça as contas: pegue
a situação das fontes naturais
vitais para o desenvolvimento
econômico, como água, terra e
energia; adicione a mudança
climática e o aumento de população; leve em conta que essa
população não só cresce como
está mais rica e consumista,
com apetite por mais recursos.
É a receita do desastre.
Não adianta falarmos que
queremos que o governo, a
ONU, seja quem for, resolva o
problema, desde que nós possamos continuar tendo 2,5 carros, como é a média nos EUA, e
comprando TV de tela de plasma. Eis a verdadeira discussão.
Pegue por exemplo a questão
da carne. É uma das mercadorias que mais energia e recursos naturais consome para ser
produzida e uma das que mais
afeta o ambiente. Os EUA, a Europa e o Canadá consomem em
média cem quilos de carne por
habitante por ano. A média
mundial é muito menor que essa. O resto do mundo não pode
comer carne como essas três
regiões, ou o mundo entraria
em colapso total. Qual é a conclusão? Os EUA devem continuar comendo mais carne que
o resto do mundo? O resto do
mundo deve se contentar com
menos? Ou nós deveríamos
chegar a uma equação mais
eqüânime no meio do caminho? Um futuro em que os norte-americanos comam menos
carne e todo o sistema global de
alimentação se adapte à nova
realidade. O mesmo se aplica a
todo o resto. Moradia, por
exemplo. Nós precisamos de
casas com três andares e dez
cômodos, mesmo com a família
média norte-americana diminuindo? Carros cada vez maiores? Se continuarmos a vender
essa idéia, de que sem casas
grandes e muitos carros você
não é bem-sucedido, de novo,
caminhamos para o colapso.
FOLHA - Pela primeira vez, há mais
obesos do que famintos no mundo,
segundo a ONU. Como chegamos a
essa assimetria?
ROBERTS - É perverso, concordo. É a primeira vez na história
que ser gordo não é privilégio
da elite. Dito isso, o problema
da comida não ser distribuída
eficientemente acontece já há
algum tempo. O Império Romano foi construído em grande
parte para permitir o acesso de
Roma ao trigo. E Roma garantiu esse acesso de maneira
bem-sucedida, porque tinha
poder para isso. Eles tomavam
o trigo do Egito e deixavam o
país com pouco. No século 13, o
mesmo aconteceu na Polônia e
no mar Báltico, que alimentavam a Europa Ocidental e passavam fome. As potências sempre consumiram mais alimento, à custa dos mais pobres.
Só que isso era menos problemático no século 20, pelo
menos na segunda metade,
porque vivíamos no mundo do
excesso, das sobras. Naquele
período, a população explodiu
em grande parte por conta da
nossa capacidade de processar
alimentos industrialmente. Assim, esquecemos a realidade de
um mundo com recursos limitados. E isso infelizmente está
reaparecendo. Temos uma população enorme, recursos de
menos, devemos nos reeducar
à luz dessa realidade e nos descolarmos de uma economia alimentar que já tem milhares de
anos de idade.
FOLHA - O sr. não é totalmente
contra o uso de transgênicos?
ROBERTS - Não, não sou da tribo
dos que rejeitam os transgênicos apenas porque são novos e,
portanto, perigosos. Meu problema com essa indústria é que
ela está voltada para a chamada
agricultura dos ricos, para
grãos que são sucessos de venda, mas não liga a mínima para
as necessidades dos outros 75%
da população, que precisa de
grãos não tão mercadologicamente importantes. O milagre
transgênico serve aos que não
precisam do milagre em primeiro lugar. De novo é: onde
está o dinheiro? Fazendeiros
africanos não têm dinheiro para comprar sementes transgênicas, logo, por que a indústria
se preocuparia com eles? Ela
está preocupada com a soja, e o
pequeno fazendeiro no Quênia
não precisa de sementes de soja. Ou seja, a indústria precisa
provar que está preocupada
com a segurança alimentar.
Eles estão usando nossos preciosos dólares de pesquisa que
poderiam estar sendo usados
para melhorar a saúde e educar
os fazendeiros mais pobres.
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