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OPINIÃO ECONÔMICA
A viagem como cura do desespero
RUBENS RICUPERO
Viajar, segundo Kierkegard, é a melhor maneira de
evitar o desespero. Para o escritor
alemão W.G. Sebald, no entanto,
é apenas o meio de passar de um
estado de desespero a outro. Assim começava uma das críticas à
obra de Sebald, publicada em dezembro de 2001, o mesmo mês em
que morreria, aos 57 anos, sugestivamente num acidente de automóvel, o escritor e professor que
ensinara durante mais de 30 anos
numa universidade de província
da Inglaterra.
Depois de longo intervalo em
que pensei ter-me despedido para
sempre da ficção, ao menos da
desconhecida, Sebald foi minha
última descoberta, infelizmente
coincidente com sua morte. Descobrir e explorar um novo ficcionista é como visitar pela primeira
vez um país estrangeiro. Contou-me um colega haver surpreendido, numa solenidade, conversa
na qual um diplomata aposentado confessava a delícia de sentir
que podia agora, sem cuidados
nem preocupações, "habitar no
país de Balzac", ler ou reler, um
após outro, os volumes da "Comédie", viver o dia-a-dia de personagens que reaparecem aqui e ali.
Eu, que aos vinte e poucos anos
morei longamente em território
balzaquiano, passei 40 anos de vida errante mudando constantemente de exílio diplomático e pátria literária. Já morei em Thomas Mann, em Proust, em Faulkner, em Conrad e há pouco me
instalei no país de Sebald, que começo a explorar já com pena
egoísta de que a morte prematura
não lhe tenha deixado tempo para expandir suas fronteiras, conforme fizeram nossos bandeirantes.
Principiei por onde terminou,
seu último romance, "Austerlitz",
já enigmático e ambivalente no
título. Seria a batalha napoleônica, a estação parisiense, o sobrenome original de Fred Astaire?
Todas essas referências estão presentes no volume, cuja capa traz a
foto insinuante de um menino
louro fantasiado de cetim branco,
capa de borla de pele, chapéu de
plumas de mosqueteiro. Começa
por aí, pela imagem, o choque da
revelação do novo. Sebald era fotógrafo e seus livros são ilustrados
por fotos quase invariavelmente
de edifícios, objetos, coisas, não de
gente. Fernando Pessoa diria:
"Paisagem, isto é, ninguém". Sem
legendas, as fotos fazem parte integral da narrativa, do mesmo
modo que as frases.
"Austerlitz" abre-se com uma
viagem: "Na segunda metade dos
anos 60, viajei frequentemente da
Inglaterra à Bélgica...". Numa
dessas jornadas, o narrador anônimo encontra Jacques Austerlitz
na "sala de passos perdidos", da
estação de Antuérpia. No curso de
encontros intermitentes, às vezes
fortuitos, separados por anos, décadas, duas vozes se alternam para contar-nos uma história que
continua a se desdobrar com capítulos recém-revelados ou anúncios de futuras explorações. É essa
uma das originalidades de Sebald, a de um tempo sem fronteiras, em que se confundem passado e presente, ou melhor, no qual
o presente vai sendo modificado
pelo que se descobre do passado.
Jacques Austerlitz, professor de
história da arquitetura em Londres, descobrira, quando adolescente, que tinha sido adotado por
um pastor calvinista em Gales, no
início da Segunda Guerra Mundial, após haver deixado Praga
num dos últimos transportes de
crianças judias para escapar ao
Holocausto nazista. Sua vida passa a ser a luta dilacerante para recuperar a memória apagada do
menino de quatro anos e meio, a
busca da mãe e do pai desaparecidos, a redescoberta da língua e
dos lugares esquecidos, em meio a
aniquiladores ataques de amnésia.
Uma das chaves do livro é a observação de Jacques: "Será que
não temos também de comparecer a encontros marcados com o
passado, com o que se passou antes e está em grande parte extinto
e precisamos ir até lá, em busca de
lugares e pessoas que mantêm conosco uma ligação a partir do que
poderíamos chamar o outro lado
longínquo do tempo?".
O personagem principal é fascinado pelo estilo arquitetônico da
era capitalista vitoriana, o "compulsivo senso de ordem e a tendência ao monumentalismo evidentes em palácios de Justiça e penitenciárias, estações ferroviárias
e Bolsas de negócios, teatros de
ópera e asilos de loucos, e as moradias populares construídas para os operários em padrões retangulares". É também obcecado pela interminável viagem ao abismo da tragédia européia do século 20, evocando, como escreveu
um crítico, "ao mesmo tempo, as
minúcias e a vastidão da existência individual, a inconsolável mágoa da história e a cintilante beleza do momento".
Koestler, um dos sobreviventes
da tragédia, escreveu que, dentre
as pessoas que conhecera antes de
completar 30 anos, três em cada
quatro tinham sido mortos na
Guerra Civil Espanhola, ou torturados até a morte em Dachau, ou
assassinados na câmara de gás
em Belsen, deportados, destruídos
pela miséria do exílio permanente, ou haviam saltado pela janela
em Viena ou Budapeste. O próprio Koestler se suicidaria mais
tarde, arrastando a mulher no
pacto de morte. Outros sobreviventes que se suicidaram foram
Primo Levi e Paul Celan, seguindo os passos de Joseph Roth em
Paris, Walter Benjamin na fronteira espanhola, Stefan Zweig no
Brasil.
Nascido em 1944 de família
não-judia, Sebald não viveu a catástrofe pessoal do fim de uma civilização. Cresceu na Alemanha
dos anos 50, quando a devastação
moral e material da guerra era
tratada como "um vergonhoso segredo de família", tabu tão forte
"que não podia provavelmente
ser admitido nem para si próprio". Reagindo contra o silêncio,
o esquecimento, dedicou toda a
obra ao resgate da memória e do
passado.
Houve quem não entendesse e
haverá hoje os que digam que esse
horror passou para não mais voltar, os campos de extermínio, as
câmaras de gás, o genocídio, a insondável vileza da monstruosidade nazista. É preciso certamente
não perder o senso das proporções. Escrevendo, porém, no fim
de uma semana que assistiu a
atentados repetidos no Iraque,
contra a sinagoga, o consulado
britânico e outros alvos em Istambul, ao contínuo apodrecimento
da situação no Afeganistão, entre
palestinos e israelenses, ao massacre interminável de inocentes,
vendo como, diante disso, a reação dos grandes é intensificar a
força da repressão, é difícil discordar de Sebald quando assinala a
limitadíssima capacidade humana de aprender com a experiência, exemplificada pelo fato de
que "os nossos projetos mais poderosos são os que mais obviamente traem o grau de nossa insegurança".
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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