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OPINIÃO ECONÔMICA
Um mal necessário
RUBENS RICUPERO
Em "memória e Identidade",
livro baseado em conversações com dois filósofos poloneses a
ser publicado no próximo ano,
João Paulo 2º teria dito que o comunismo foi o "mal necessário"
do século 20. Não sei em que sentido foi usada a expressão nem se
tem razão o líder de "Rifondazione Comunista", Fausto Bertinotti,
que a atribui a uma mera "interpretação metafísica da história".
Como ultimamente o petróleo me
preocupa mais que o comunismo
defunto, direi que a descrição calça bem no que está a suceder no
domínio da energia. Parece, com
efeito, cada vez mais claro que só
um choque petrolífero de razoável magnitude e efeito perdurável
obrigará o mundo a fazer o que
deveria ser feito por imposição da
simples razão: economizar energia a fim de evitar a catástrofe da
mudança climática e a perigosa
dependência em relação ao
Oriente Médio.
Para quem duvida, basta ler o
estudo dedicado pela Agência Internacional de Energia a 30 anos
de consumo energético nas economias avançadas. A relação entre
ganhos de eficiência energética e
os altos preços do petróleo é direta
e imediata. Logo após os megachoques de 1973 e 1979, os progressos foram rápidos e impressionantes. A partir do contrachoque de 1986, à medida que as cotações desabavam, os esforços para poupar óleo relaxaram. Entre
1973 e 1990, o consumo energético
dos ricos quase não crescia (apenas 0,4% ao ano). Bastou, no entanto, que os preços caíssem para
o consumo voltar a aumentar a
1,4% ao ano, na década de 1990.
Não se trata, diferentemente do
que se poderia pensar, da conseqüência da aceleração do crescimento econômico. A eficiência
energética se mede em termos da
quantidade de energia necessária
para produzir uma unidade de
PIB, ou intensidade energética.
Quanto menos energia se usa para produzir uma unidade de produto, maior é a eficiência. Entre
1973 e 1982, no auge do encarecimento do petróleo, a intensidade
energética se reduzia à taxa de
2,5% por ano. De 1983 a 1990, no
momento da queda de preços, os
ganhos de intensidade declinavam para 1,5% anualmente. Em
seguida, a tendência se inverte a
0,7% negativo, com o abandono
quase total dos esforços de economizar energia.
É nessa altura que se observa
como o setor de transportes se torna cada vez mais dependente do
petróleo. A indústria começa a
economizar menos, mas continua
a dar contribuição positiva. Já no
caso dos transportes, o número de
passageiros por avião triplicou, e,
por automóvel, dobrou. Também
se multiplicou por dois o consumo
de energia dos caminhões, devido
ao aumento descontrolado do
transporte rodoviário de mercadorias.
Tudo isso é de uma lógica impecável na economia de mercado.
Se são os preços que comandam,
por que se dar ao trabalho (e ao
custo) de poupar energia quando
o preço do petróleo em 1998 batia
no fundo do poço, isto é, era o
mais baixo, em termos reais, desde o fim da Segunda Guerra? O
problema é que a lógica do mercado é a causa indiscutível do aumento da acumulação de CO2 na
atmosfera. No ano passado, a taxa de acumulação dobrou em relação aos anos anteriores, tornando mais próximo e garantido
o desastre climático.
Mas, além da catástrofe ambiental, o mercado gera sua própria instabilidade, ao provocar,
por meio do mecanismo de preços, o aumento do consumo e da
dependência de fontes instáveis.
O resultado é que, entre agora e
2025, a proporção de óleo importado passará a 70% ou mais nos
EUA, na Europa ocidental e na
China. A dependência tende a se
agravar justamente em relação às
zonas mais turbulentas do planeta, uma vez que, após 2025, os
únicos países cujas reservas sobreviverão à taxa atual de produção
serão o Iraque, o Kuait, os Emirados Árabes Unidos, o Irã, a Arábia Saudita e a Venezuela.
Se nada mudar até lá, os sustos
de hoje parecerão jogo de criança,
comparado ao que nos espera. O
mesmo raciocínio se aplica ao desenvolvimento de combustíveis
alternativos. A história do álcool
brasileiro demonstra que nenhuma alternativa conseguirá se viabilizar se confrontada com as
bruscas quedas do preço do óleo
de anos recentes.
Uma conclusão desagradável se
impõe: numa economia de mercado obediente à lógica de preços,
só o encarecimento durável do petróleo, não as advertências da
ciência climática ou dos geopolíticos, será capaz de nos forçar a ter
juízo, economizando energia e
desenvolvendo alternativas limpas. Nesse sentido, pior que um
choque altista como o atual será o
fantasma de um contrachoque
baixista como o de 1986, que nos
livraria a curto prazo de um mal
necessário apenas para condenar-nos a um mal muito maior a
prazo mais longo.
Rubens Ricupero, 67, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações
Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo
Itamar Franco).
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