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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Manda quem pode, obedece quem tem juízo
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
O recente ucasse que o Copom lançou contra os brasileiros atingiu minha testa justamente quando me entregava à
leitura do livro "Markets and Authorities: Global Finance and Human Choice" ("Mercados e Autoridades: Finança Global e Escolha
Humana"), organizado pelo economista italiano Marcello de Cecco (*). O livro é uma homenagem
póstuma a Susan Strange, autora
de "Casino Capitalism e Mad
Money", análises pioneiras e um
tanto iconoclastas sobre as origens, trajetórias e conseqüências
da globalização financeira contemporânea.
O livro tem o propósito de investigar -está expresso no título-
as relações entre os comportamentos, manias e pânicos dos
agentes que operam nos mercados financeiros globalizados e a
capacidade de resposta das autoridades políticas. Trata, portanto,
da convivência quase nunca pacífica entre o mundo da finança
-constituído pelas instituições,
regras e procedimentos relacionados com a avaliação da riqueza- e a política democrática, entendida como o âmbito por excelência da escolha humana, da
busca da liberdade.
Na atual situação brasileira,
duas figuras poderiam personificar as forças em ação: representando os mercados, o diretor de
Política Econômica do Banco
Central, Affonso Bevilacqua; brigando pela política, o presidente
Lula.
Bevilacqua, segundo fontes autorizadas, considera-se um guardião da racionalidade, especialmente da estabilidade monetária.
Sofre, dizem os relatos, violentas
erupções cutâneas quando políticos e seus incontroláveis frêmitos
populistas ameaçam se aproximar. Já o presidente Lula vive
noites de agonia às vésperas das
reuniões do Copom, antecipando
os tormentos de pronunciar, no
dia seguinte, mais um discurso
apaziguador.
Os artigos reunidos por De Cecco, em sua maioria, concluem que
assim é a vida na maioria dos Estados nacionais da periferia,
aqueles capturados nas armadilhas do capitalismo globalizado,
ou nas "voragens da história", como proclamou certa vez o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Para esse grupo de países, é
crescente a separação entre o poder e a política: o verdadeiro poder, capaz de determinar a extensão das opções práticas, flui e,
graças à mobilidade cada vez menos restrita, impõe suas razões às
políticas nacionais.
Já os Estados Unidos se valem
do peso de sua dívida pública para sustentar a supremacia do dólar e forçar a liberalização dos sistemas financeiros de outros países. Durante os últimos 30 anos, o
Federal Reserve (banco central
dos EUA) manejou com grande
agilidade a sua política monetária, convertendo-a numa máquina de sucção de liquidez e de capitais para sustentar o crescimento de sua economia. O último ciclo americano comprovou a eficácia e o poder dessa forma de integração financeira, na medida em
que propiciou uma espetacular
expansão do crédito à produção e
ao consumo, sem maiores riscos
de sublevação inflacionária. Esse
modo assimétrico de funcionamento da economia capitalista
pouco se coaduna com as visões
panglossianas da globalização.
Os critérios da ação política racional, democrática e libertadora
não se aplicam à agenda dos mercados em que circula e é avaliada
a riqueza mobiliária global. Os
agentes e os procedimentos não
são racionais nem irracionais,
simplesmente cumprem os desígnios de sua natureza, sempre dilacerada entre a "ganância infecciosa" e o colapso da histamina.
"Não há alternativa", proclamam os adeptos do neoliberalismo. Sobre esse pano de fundo
Margareth Thatcher foi capaz de
anunciar a morte da sociedade e
o triunfo do indivíduo. É duvidoso que o indivíduo projetado pela
razão iluminista e seus desdobramentos tenha, de fato, triunfado.
Nos países em que os sistemas de
proteção contra os freqüentes
"acidentes" ou falhas do mercado
são parciais ou estão em franca
regressão, a insegurança assume
formas ameaçadoras para o convívio social. Pouco podem fazer os
empregados de qualquer nível
quando a empresa que os empregava decide sem aviso mudar o
negócio para outra região ou iniciar uma nova rodada de "racionalização" através do enxugamento de despesas, redução da
força de trabalho, corte de gastos
administrativos, venda ou fechamento de unidades não-lucrativas. Menos ainda podem fazer os
indivíduos para evitar a desvalorização de suas qualificações arduamente conquistadas ou para
enfrentar o desaparecimento de
suas funções.
O discurso econômico em voga
pretende explicar ao cidadão afetado que é inteiramente fora de
propósito a idéia de controlar as
causas desses golpes do destino.
As erráticas e aparentemente
inexplicáveis convulsões das Bolsas de Valores ou as misteriosas
evoluções dos preços dos ativos e
das moedas são capazes de destruir suas condições de vida. Mas
o consenso dominante garante
que, se não for assim, sua vida pode piorar ainda mais. A formação
desse consenso é, em si mesma,
um método eficaz de bloquear o
imaginário social, numa comprovação dolorosa de que as instituições sociais, criaturas da história
-da ação humana coletiva-
transfiguram-se em forças "naturais", num processo objetivado e
hostil aos anseios de liberdade de
homens e mulheres.
A boa sociedade deve tornar livres os seus integrantes, não apenas livres de um ponto de vista
negativo -no sentido de não serem coagidos a fazer o que não fariam por espontânea vontade-
mas positivamente livres, no sentido de serem capazes de fazer algo da própria liberdade. Isso significa primordialmente adquirir
o poder de influenciar as condições da própria existência, e não
ser tangido por forças que é incapaz de controlar.
(*) Marcello De Cecco dedica-se ao estudo de questões monetárias e financeiras.
Escreveu, entre outros, um texto clássico, "Moneta e Impero", que trata da globalização financeira do século 19 desenvolvida à sombra do padrão-ouro e sob o
comando do sistema bancário inglês.
Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor
titular de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Foi chefe
da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e
Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).
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