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OPINIÃO ECONÔMICA
A geoestratégia do petróleo
RUBENS RICUPERO
Três episódios dos últimos
dias voltaram a mostrar a
vulnerabilidade de um mundo
totalmente dependente de um
produto concentrado nas regiões
mais instáveis e perigosas do globo.
O primeiro, no domínio das cotações, foi quando o preço do petróleo em Nova York chegou, em
17 de março, a US$ 38,48 o barril
-o mais alto desde outubro de
1990- após a decisão da Opep de
reduzir, a partir do último dia 1º,
sua produção em 1 milhão de barris diários, a fim de neutralizar a
desvalorização do dólar.
O segundo, na área das reservas, foi o escândalo policial-financeiro sobre a manipulação
das reservas da Shell, que provocou sua redução, num primeiro
momento, em 20%, custando a
cabeça do presidente e dos principais dirigentes da empresa e causando à maior acionista, a rainha
Beatriz, da Holanda, um prejuízo
de 375 milhões.
O terceiro, de índole política, é a
revelação do livro de Robert
Woodward de que haveria um
arreglo secreto entre o embaixador da Arábia Saudita em Washington, o poderoso príncipe Sultan, e as altas esferas governamentais, para favorecer a reeleição do atual presidente mediante
uma política de preços baixos na
hora decisiva.
Essa última afirmação foi, como era de esperar, veementemente desmentida pelos interessados.
Alguns tenderão a considerá-la
uma fantasia a mais na fecunda
produção de teorias conspiratórias e histórias secretas do petróleo. Os dois primeiros desenvolvimentos são, no entanto, fatos e
apenas alguns poucos que selecionei da farta colheita de acontecimentos inquietantes na geoestratégia do petróleo, balizada, de um
lado, por transformações dramáticas do lado dos consumidores,
do outro, pelas ameaças que se
acumulam nas grandes zonas
produtoras.
A mudança mais importante
no ângulo do consumo vem do
apetite insaciável da China, buraco negro gigantesco que suga e devora quantidades astronômicas
de óleo, aço, ferro, cobre, níquel,
soja, algodão, pesando sobre a recuperação de preços dessas commodities. Em 2002, a China superou o Japão como segundo consumidor mundial, depois dos EUA.
Em 2003, suas importações de
bruto cresceram 31%, e até 2025
sua necessidade dobrará, passando de 5,4 milhões de barris por dia
a 10,9 milhões e alterando sua
parcela do consumo global de
7,1% a 9,2%. O grau de dependência do país em relação ao exterior atingirá 82%.
Dois terços do suprimento provêm do Oriente Médio pela rota
marítima de 12 mil quilômetros
que separam Ormuz de Xangai.
Controlada pela poderosa armada naval americana, essa rota
constitui, com a dependência comercial chinesa do mercado dos
EUA, um dos dados essenciais para compreender a crescente aproximação político-econômica entre Pequim e Washington.
Da perspectiva da produção, o
escândalo Shell reabriu a polêmica sobre o esgotamento das reservas, inaugurado há mais de meio
século pelo geólogo americano
King Hubbert, com os primeiros
cálculos precisos sobre a época em
que se atingiria o pico da produção, iniciando-se, a partir de então, declínio irreversível. Existe
mesmo hoje em dia uma entidade, a Aspo (Association for the
Study of Peak Oil and Gas), especializada em estimativa do pico e
reunindo os "pessimistas" da indústria petrolífera. Embora nesse
setor a controvérsia seja ainda
elevada, os cálculos mais aceitos
combinam as reservas da Opep,
da antiga União Soviética e dos
40 e tantos demais produtores importantes (cerca de 2,2 trilhões de
barris de reserva), projetando que
a produção alcançaria um pico
de 80 milhões diários de barris
entre 2010 e 2021. Acrescentando
o óleo não-convencional, mais caro, o resultado-síntese é que o pico
da produção de todas as fontes seria de aproximadamente 90 milhões de barris/dia por volta de
2015, em pouco mais de uma década.
A produção diária atual é de 75
milhões de barris. A fim de satisfazer a demanda calculada para
2015, seria necessário produzir,
em termos adicionais ao nível
atual, mais 60 milhões de barris
ao dia. Para tanto, o mundo precisaria descobrir e operar em poucos anos mais do que dez novas
áreas produtivas, cada uma do
tamanho do mar do Norte, o que
parece francamente impossível. É
por essas razões objetivas que a
tendência a um aumento sensível
e contínuo no preço do petróleo é
estrutural, não apenas fruto de
manipulações do mercado. O
aperto nos preços, segundo as especulações mais preocupantes,
pode vir dentro de cinco anos
(2010), com um primeiro choque
elevando o barril a US$ 50. Em 15
anos, o preço poderia dobrar a
US$ 100.
As conseqüências são difíceis de
imaginar em toda a extensão,
pois o petróleo representa 40% da
energia comercializada e 90% do
combustível para transporte. Mas
não é só isso. Quase tudo, além
dos carros, caminhões, aviões, navios, depende do petróleo, a começar pela petroquímica, os fertilizantes, plásticos, sem mencionar
os armamentos e o poder militar.
A civilização moderna, tal como
a conhecemos, alimenta-se de
óleo.
O pior é que o esgotamento das
reservas do Canadá, do México e
do mar do Norte tornará o mundo mais dependente das zonas
mais instáveis: Oriente Médio,
Cáucaso, Ásia central, golfo da
Guiné. Os EUA terão de importar,
sobretudo dessas regiões, 11 milhões de barris ao dia atualmente,
passando a 18,5 milhões em 2020,
o equivalente aos consumos da
China e da Índia somados. Não é
preciso, assim, ser adepto de teorias conspiratórias da história para compreender por que essa realidade impulsiona a adoção pelos
EUA de uma geoestratégia de forte componente petrolífero.
Haveria uma alternativa de
maior sabedoria: aceitar o Protocolo de Kyoto, reduzir com determinação o consumo de combustíveis fósseis e investir rapidamente
em fontes renováveis de energia,
a principiar pelo etanol. Até
quando teremos de esperar para
convencer-nos de que crises como
a do Iraque e as catástrofes climáticas não nos deixam outra escolha?
Rubens Ricupero, 67, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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