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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Redefinindo a questão nacional
MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
A política externa brasileira tem um rebatimento espacial que, além de modificar a
inserção internacional do país,
permite redefinir a "questão nacional". A primeira dimensão
passa pelas negociações e projetos
em curso de integração sul-americana com implicações logísticas
e político-econômicas, que rebatem sobre a integração espacial
norte-sul e leste-oeste do país. A
segunda leva em conta as modificações ocorridas na geoeconomia
e na geopolítica mundial a partir
do final do século 20. As novas diretrizes permitem que o Brasil tenha relações de complementaridade político-econômica com as
grandes nações em desenvolvimento muito distintas da política
terceiro-mundista anterior ou da
recorrente submissão ao centro
hegemônico.
A industrialização dos grandes
países asiáticos foi a mais importante mudança na divisão internacional do trabalho nas últimas
décadas. Tanto o Japão como a
China e a Índia -os dois países
que mais cresceram nos últimos
anos- têm uma relação desequilibrada entre recursos naturais e
população. Assim, a demanda
por alimentos, matérias-primas
minerais e produtos energéticos
deverá ser mantida a médio prazo mesmo que os grandes países
asiáticos cresçam a taxas menores que as atuais e os preços internacionais flutuem. Nossas vantagens comparativas estáticas (baseadas na abundância de recursos naturais) podem ser convertidas em dinamismo interno através de cadeias agroindustriais
mais longas e diversificadas. No
caso da soja, a cadeia alimentar
completa, biodiesel, equipamentos agrícolas; no caso do álcool, o
complexo álcool-químico pode ir
além do combustível não-poluente para equipamentos de transporte. As questões centrais do espaço nacional continuam sendo,
como foram secularmente, a concentração da propriedade e os
movimentos da população.
O Brasil pode concorrer hoje,
ganhando dos EUA, no primeiro
estágio das cadeias, isto é, na produção e na exportação de produtos primários. O agronegócio
orientado espontaneamente pelo
mercado externo tenderá, porém,
a tomar a forma de "plantation"
controlada de fora e não a integrar a população rural às cadeias
agroindustriais. A ocupação do
espaço pode ser feita com uma logística que não leve em conta os
deslocamentos e a fixação interna
da população. Nesse caso, a expansão da nova fronteira não terá fôlego para mudar a questão
do desenvolvimento nacional, e
os caminhos da grande empresa
agrícola, da urbanização e da reforma agrária continuarão divergentes, como no passado.
Os "desenvolvimentistas" do
pós-guerra acreditavam que a industrialização e a urbanização
resolveriam o problema do emprego e da renda das populações
rurais que, ao se tornarem assalariadas, podiam subir de nível de
vida, organizar-se através da luta
sindical e conquistar melhores
padrões de vida. É verdade que isso ocorreu para uma parcela da
população metropolitana, enquanto a indústria manufatureira cresceu a taxas altíssimas até o
final dos anos 70 do século passado. A construção civil e os serviços
informais, porém, pagavam mal e
tiveram de absorver os migrantes
rurais mais pobres e menos qualificados nas periferias das grandes
cidades. As migrações rurais urbanas foram tão violentas que
produziram em 40 anos no Brasil
taxas de urbanização que levaram oito décadas para ocorrer
nos EUA (depois da ocupação da
fronteira em sucessivas marchas
para o oeste).
A constituição de vastas massas
de populações pobres e desorganizadas nas áreas metropolitanas e
a ruptura da democracia nos
anos 60 impediram que o salário
mínimo subisse no Brasil para
voltar ao patamar de 1959. Depois dos seus famosos 50 anos em
cinco, JK reconheceu que, na nossa marcha para o oeste (construção de Brasília) e na abertura do
eixo Belém-Brasília, faltavam as
famosas 50 agrovilas que ele prometeu fazer na eleição seguinte
(que não houve). O regime autoritário engavetou o projeto da reforma agrária às margens dos
grandes eixos rodoviários, nas
faixas de fronteira e o próprio Estatuto da Terra. Com isso, a questão agrária só fez piorar nas antigas e novas zonas de fronteira
(ver mapa dos conflitos no campo, 1997, Comissão Pastoral da
Terra). Um corte temporal no final do século 20 mostra que o problema da pobreza se "universalizou" e tem uma distribuição quase equivalente à da população:
pobreza rural (25%), urbana
(50%) e metropolitana (25%)
(ver diagnóstico do Fome Zero -
Instituto da Cidadania). A expansão desmedida das áreas metropolitanas do antigo "Sul maravilha" e a queda no crescimento
econômico aumentaram o desemprego aberto. O aumento do
emprego nas médias e pequenas
cidades do interior, sobretudo na
nova fronteira agrícola, não foi
suficiente para compensar o desemprego nas grandes e a expulsão rural das áreas tradicionais.
Um novo "modelo primário exportador" ou a retomada da industrialização num patamar tecnológico mais avançado não garantem a inclusão social no futuro, como não o fizeram no passado. Transitar para um novo modelo de desenvolvimento menos
concentrador e excludente implica mudanças estruturais na forma de ocupação do espaço nacional, sobretudo no que se refere aos
eixos de integração do território e
à forma de exploração dos recursos naturais. As políticas públicas
-da infra-estrutura ao crédito,
das políticas setoriais às sociais-
estão sujeitas a restrições de toda
natureza. As restrições têm de ser
afastadas e as políticas de longo
prazo orientadas por uma visão
estratégica de integração do território e da população que permita
redefinir a "questão nacional".
No dizer do saudoso Milton Santos, "o território deve ser a fala
privilegiada da nação" (ver "O
Brasil: Território e Sociedade no
Início do Século 21", Record,
2001).
Maria da Conceição Tavares, 74, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
professora associada da Universidade de
Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet:
www.abordo.com.br/mctavares
E-mail -
mctavares@abordo.com.br
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