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São Paulo, domingo, 25 de maio de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Um arco de luz

RUBENS RICUPERO

A áfrica é o mais escuro dos continentes, não só devido às calamidades que a afligem mas em sentido literal, porque carece de luz e energia. As fotografias noturnas de satélite mostram a Índia, a Arábia, os demais continentes como infinitos pontos de luz. Já as sombras escurecem a massa africana, com exceção do sul, do extremo norte, de uma ou outra capital ou cidade grande. Olhando para a costa oeste, percebe-se, a partir da Nigéria, um arco iluminado, que cobre Guiné Equatorial, o Gabão, para vir morrer em Angola. Não se trata, porém, de um colar de cidades luminosas, mas de um arco de fogo, o gás que queima em meio às trevas envolventes.
É esse um dos paradoxos de continente que produz para os outros cada vez mais petróleo e gás, ao mesmo tempo que não os aproveita para gerar energia para suas populações. Estou em Luanda para a Conferência Africana sobre Comércio e Financiamento de Petróleo e Gás, organizada pela Unctad, o órgão da ONU responsável por comércio e desenvolvimento no qual trabalho. Trouxemos todas as gigantes petrolíferas, inclusive a Esso, a ChevronTexaco e a tão falada Halliburton, a fim de ajudar os africanos a aumentar sua insignificante participação no fornecimento dos bilionários serviços e produtos de que se nutre a atividade extrativa. Enquanto no Brasil, graças à política da Petrobras, chega a quase 80% a porcentagem dos insumos nacionais, na África, no melhor dos casos a Nigéria, ela mal atinge 15%. É chocante ver como nas plataformas angolanas as bóias, os objetos mais corriqueiros, até a água engarrafada são importados da Europa.
Além de melhorar o valor agregado, queremos contribuir para que Angola e os outros produtores deixem de transformar o gás em fumaça inútil e poluidora, utilizando-o na geração de eletricidade, na fabricação de gás liquefeito, de metanol, fertilizantes, produtos petroquímicos. Desse modo, não só esses países porão fim a um desperdício monumental de combustível nobre mas obterão créditos para negociar com as empresas os certificados de redução de emissões previstos pelo "mecanismo de desenvolvimento limpo" do Protocolo de Kyoto.
A geração de energia barata é o primeiro passo para que Angola diversifique a economia e escape à "maldição das riquezas". O fenômeno é estranho, mas bem conhecido. Diferentemente do que seria lógico esperar, raros são os países "abençoados" por recursos naturais que dão certo. Os exemplos mais evidentes são os exportadores de petróleo. No passado, antes do petróleo, quem conquistou riqueza crescente e estável foi a Inglaterra, não a Espanha faustosa das minas de prata de Potosi, do ouro do México e dos Andes. Das minas e garimpos brasileiros, o ouro e os diamantes transitaram fugazmente pela corte lusitana e algo se fixou nos altares de conventos, que alimentaram a gula de dom João 5º por festas de igreja. A maior parte, contudo, foi parar nos cofres britânicos para pagar pelas importações de manufaturas. Após o brilho de fogo-fátuo, os reinos ibéricos mergulharam na letargia e no declínio, só entrecortados pelas explosões de intolerância inquisitorial da "plebe beata, suja e feroz".
Como escapar a essa triste sina? Arturo Uslar Pietri, o escritor e ministro venezuelano, encontrou fórmula irretocável: "É preciso semear o petróleo". Isto é, as riquezas perecíveis, fadadas ao esgotamento, devem ser utilizadas como sementes de outras riquezas sustentáveis e diversificadas. Delas, a mais segura, a única que a traça não rói e os humores inconstantes das bolsas não derrubam, são os recursos humanos, a educação para possibilitar o desenvolvimento como processo de aprendizagem contínua, baseado no conhecimento, na inovação, na tecnologia.
Os próprios venezuelanos não seguiram o conselho do seu sábio compatriota. Outros, no entanto, o fizeram: a Noruega, que criou um fundo de investimento para as gerações vindouras; em graus diferentes, a África do Sul, a Austrália, ricas em minerais, a Indonésia, no setor do petróleo. É o desafio de Angola, que se acerca de 1 milhão de barris diários, devendo chegar a 2 milhões lá por 2008, sem contar os diamantes e outros recursos. O país apenas emerge de 40 anos de guerra, primeiro de libertação, depois civil, insufladas uma e outra, ao menos em boa medida, pela cobiça das riquezas. Luanda ostenta, a cada passo, as cicatrizes da guerra. Crianças aleijadas por minas, um oceano de musseques, as favelas improvisadas pelos refugiados, que ameaçam afogar a doçura cor-de-rosa do centro antigo, as casas e arvoredos reminiscentes do Rio, de capitais do Nordeste.
De Angola vieram mais de dois terços, talvez 68% dos africanos que construíram o Brasil, "civilizando a América", nas palavras de Bernardo Pereira de Vasconcelos. O tráfico, tão vividamente descrito por Luís Felipe de Alencastro no "Trato dos Viventes", criou laços fortíssimos entre as duas margens do Atlântico. Dois dos três deputados enviados às Cortes de Lisboa em 1821 escolheram o Brasil e aderiram à Independência. A fim de evitar que a opção se generalizasse a toda Angola, Portugal exigiu, no tratado do reconhecimento de 1825, artigo pela qual dom Pedro 1º se comprometia a não aceitar a adesão de outras colônias lusas. Durante muito tempo, Lisboa esforçou-se por impedir qualquer contato entre brasileiros e angolanos. Nem sempre nos portamos bem quando começou a guerra anticolonialista, mas a honra brasileira foi redimida por dois diplomatas de valor -Ovídio de Melo, em Luanda, Italo Zappa, em Brasília-, que convenceram o chanceler Azeredo da Silveira e o presidente Geisel a fazer do Brasil o primeiro país a reconhecer a independência angolana, em 1975. Esses autênticos heróis da diplomacia -pois não se fazem heróis apenas nos campos de batalha- foram-me lembrados pelos mais altos interlocutores que encontrei. Temos com Angola dívida incomensurável e impossível de pagar. As dívidas de sangue, as geradas no seio das famílias, não se pagam com dinheiro, alimentam-se com solidariedade e ajuda desinteressadas. Mas o Brasil só começará a fazer esse tipo de pagamento a Angola e à África quando for capaz de resgatar a dívida que contraiu com seu próprio povo marginalizado, muitas vezes descendente de africanos. Agora que o presidente do Brasil se prepara a visitar Angola, faríamos bem em compreender que a solidariedade com os angolanos e a solidariedade com os pobres de nossa terra é única e indivisível.


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).

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