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OPINIÃO ECONÔMICA
Um arco de luz
RUBENS RICUPERO
A áfrica é o mais escuro dos
continentes, não só devido às
calamidades que a afligem mas
em sentido literal, porque carece
de luz e energia. As fotografias
noturnas de satélite mostram a
Índia, a Arábia, os demais continentes como infinitos pontos de
luz. Já as sombras escurecem a
massa africana, com exceção do
sul, do extremo norte, de uma ou
outra capital ou cidade grande.
Olhando para a costa oeste, percebe-se, a partir da Nigéria, um
arco iluminado, que cobre Guiné
Equatorial, o Gabão, para vir
morrer em Angola. Não se trata,
porém, de um colar de cidades luminosas, mas de um arco de fogo,
o gás que queima em meio às trevas envolventes.
É esse um dos paradoxos de
continente que produz para os
outros cada vez mais petróleo e
gás, ao mesmo tempo que não os
aproveita para gerar energia para
suas populações. Estou em Luanda para a Conferência Africana
sobre Comércio e Financiamento
de Petróleo e Gás, organizada pela Unctad, o órgão da ONU responsável por comércio e desenvolvimento no qual trabalho. Trouxemos todas as gigantes petrolíferas, inclusive a Esso, a ChevronTexaco e a tão falada Halliburton, a fim de ajudar os africanos a
aumentar sua insignificante participação no fornecimento dos bilionários serviços e produtos de
que se nutre a atividade extrativa. Enquanto no Brasil, graças à
política da Petrobras, chega a
quase 80% a porcentagem dos insumos nacionais, na África, no
melhor dos casos a Nigéria, ela
mal atinge 15%. É chocante ver
como nas plataformas angolanas
as bóias, os objetos mais corriqueiros, até a água engarrafada
são importados da Europa.
Além de melhorar o valor agregado, queremos contribuir para
que Angola e os outros produtores
deixem de transformar o gás em
fumaça inútil e poluidora, utilizando-o na geração de eletricidade, na fabricação de gás liquefeito, de metanol, fertilizantes, produtos petroquímicos. Desse modo,
não só esses países porão fim a
um desperdício monumental de
combustível nobre mas obterão
créditos para negociar com as empresas os certificados de redução
de emissões previstos pelo "mecanismo de desenvolvimento limpo" do Protocolo de Kyoto.
A geração de energia barata é o
primeiro passo para que Angola
diversifique a economia e escape
à "maldição das riquezas". O fenômeno é estranho, mas bem conhecido. Diferentemente do que
seria lógico esperar, raros são os
países "abençoados" por recursos
naturais que dão certo. Os exemplos mais evidentes são os exportadores de petróleo. No passado,
antes do petróleo, quem conquistou riqueza crescente e estável foi
a Inglaterra, não a Espanha faustosa das minas de prata de Potosi,
do ouro do México e dos Andes.
Das minas e garimpos brasileiros,
o ouro e os diamantes transitaram fugazmente pela corte lusitana e algo se fixou nos altares de
conventos, que alimentaram a
gula de dom João 5º por festas de
igreja. A maior parte, contudo, foi
parar nos cofres britânicos para
pagar pelas importações de manufaturas. Após o brilho de fogo-fátuo, os reinos ibéricos mergulharam na letargia e no declínio,
só entrecortados pelas explosões
de intolerância inquisitorial da
"plebe beata, suja e feroz".
Como escapar a essa triste sina?
Arturo Uslar Pietri, o escritor e
ministro venezuelano, encontrou
fórmula irretocável: "É preciso semear o petróleo". Isto é, as riquezas perecíveis, fadadas ao esgotamento, devem ser utilizadas como
sementes de outras riquezas sustentáveis e diversificadas. Delas, a
mais segura, a única que a traça
não rói e os humores inconstantes
das bolsas não derrubam, são os
recursos humanos, a educação
para possibilitar o desenvolvimento como processo de aprendizagem contínua, baseado no conhecimento, na inovação, na tecnologia.
Os próprios venezuelanos não
seguiram o conselho do seu sábio
compatriota. Outros, no entanto,
o fizeram: a Noruega, que criou
um fundo de investimento para
as gerações vindouras; em graus
diferentes, a África do Sul, a Austrália, ricas em minerais, a Indonésia, no setor do petróleo. É o desafio de Angola, que se acerca de 1
milhão de barris diários, devendo
chegar a 2 milhões lá por 2008,
sem contar os diamantes e outros
recursos. O país apenas emerge de
40 anos de guerra, primeiro de libertação, depois civil, insufladas
uma e outra, ao menos em boa
medida, pela cobiça das riquezas.
Luanda ostenta, a cada passo, as
cicatrizes da guerra. Crianças
aleijadas por minas, um oceano
de musseques, as favelas improvisadas pelos refugiados, que ameaçam afogar a doçura cor-de-rosa
do centro antigo, as casas e arvoredos reminiscentes do Rio, de capitais do Nordeste.
De Angola vieram mais de dois
terços, talvez 68% dos africanos
que construíram o Brasil, "civilizando a América", nas palavras
de Bernardo Pereira de Vasconcelos. O tráfico, tão vividamente
descrito por Luís Felipe de Alencastro no "Trato dos Viventes",
criou laços fortíssimos entre as
duas margens do Atlântico. Dois
dos três deputados enviados às
Cortes de Lisboa em 1821 escolheram o Brasil e aderiram à Independência. A fim de evitar que a
opção se generalizasse a toda Angola, Portugal exigiu, no tratado
do reconhecimento de 1825, artigo pela qual dom Pedro 1º se comprometia a não aceitar a adesão
de outras colônias lusas. Durante
muito tempo, Lisboa esforçou-se
por impedir qualquer contato entre brasileiros e angolanos. Nem
sempre nos portamos bem quando começou a guerra anticolonialista, mas a honra brasileira foi
redimida por dois diplomatas de
valor -Ovídio de Melo, em
Luanda, Italo Zappa, em Brasília-, que convenceram o chanceler Azeredo da Silveira e o presidente Geisel a fazer do Brasil o
primeiro país a reconhecer a independência angolana, em 1975.
Esses autênticos heróis da diplomacia -pois não se fazem heróis
apenas nos campos de batalha-
foram-me lembrados pelos mais
altos interlocutores que encontrei.
Temos com Angola dívida incomensurável e impossível de pagar. As dívidas de sangue, as geradas no seio das famílias, não se
pagam com dinheiro, alimentam-se com solidariedade e ajuda desinteressadas. Mas o Brasil só começará a fazer esse tipo de pagamento a Angola e à África quando for capaz de resgatar a dívida
que contraiu com seu próprio povo marginalizado, muitas vezes
descendente de africanos. Agora
que o presidente do Brasil se prepara a visitar Angola, faríamos
bem em compreender que a solidariedade com os angolanos e a
solidariedade com os pobres de
nossa terra é única e indivisível.
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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