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São Paulo, domingo, 25 de maio de 2003

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Livrai-nos do mal, amém...

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

O entusiasmo generalizado com a liberalização e a desregulamentação dos mercados financeiros começa a se transformar em preocupação. Os sintomas dessa mudança nos sentimentos do público em geral e dos chamados especialistas devem ser buscados no tom mais nítido das críticas provenientes dos arraiais ortodoxos. A dúvida e o questionamento têm sido gerais e irrestritos. Agora já são muitos os que criticam as interpretações que costumavam atribuir as crises financeiras e cambiais à má gestão monetária e fiscal de governos dos países emergentes.
Durante a crise da Ásia em 1997, virou moda jogar a responsabilidade pelas desgraças no "capitalismo de compadres". Mas logo ficou claro para os analistas menos ideológicos que a trapalhada asiática foi fruto da liberalização financeira, engendrada na segunda metade dos anos 80 pela ação combinada do Tesouro norte-americano com o FMI. O pior para os fanáticos do apocalipse era constatar que os fundamentos fiscais de países como a Coréia estavam em ordem, como, aliás, atestavam os relatórios do FMI. Poucos meses antes da derrocada financeira e cambial, a OCDE também se derreteu em elogios à situação macroeconômica do combalido tigre, alongando-se nos encômios à taxa de poupança agregada.
Os analistas mais badalados da finança globalizada ficaram desorientados com o caráter privado da crise. É possível adivinhar o que se passa nas cabeças dos aturdidos: os mercados privados são "eficientes" e, portanto, os agentes usam de forma adequada a informação disponível e decidem racionalmente. Sendo assim, os episódios de descontrole financeiro desse porte só podem ser explicados por desmandos dos governos.
A sucessão de escândalos empresariais nos Estados Unidos deixou de calças na mão os arrogantes e presunçosos do Primeiro Mundo ocidental. Digo ocidental porque muitos juravam de pés juntos: as encrencas no Japão e a crise financeira na Ásia eram o resultado lógico de sistemas bancários concebidos para um "capitalismo de compadres". Coisa de orientais que descuravam da supervisão e a regulamentação de seus sistemas bancários.
Mas os fanfarrões descobriram que o mundo financeiro norte-americano não só está enterrado até o pescoço nas fraudes contábeis como também desenvolveu tecnologias formidáveis para tapear os investidores comuns, esquentando ações mal avaliadas para depois descarregar a muamba no colo dos incautos clientes. Mais isso não é o pior: tudo indica que debaixo do angu ainda haja muito peixe.
Joseph Stiglitz refutou, em artigo recente, a interpretação de que a crise asiática foi o resultado das malfeitorias dos governos. Ele afirmou que "a crise financeira da Ásia foi o resultado de um sem-número de fatores que tornaram as economias vulneráveis a um súbito colapso da confiança. Os problemas -que incluem a má alocação dos investimentos, o endividamento de curto prazo sem "hedge" e a alavancagem excessiva- decorreram de decisões financeiras privadas. Em muitos países, uma liberalização financeira mal administrada eliminou restrições, inclusive as que proibiam os empréstimos bancários para empreendimentos imobiliários, antes de colocar em funcionamento um quadro regulatório adequado. Os críticos [do milagre asiático] esquecem que uma operação de empréstimo requer um devedor, mas também um credor. Os devedores que desperdiçaram o dinheiro em investimentos improváveis repartem a responsabilidade com os credores, muitos dos quais são bancos internacionais".
Stiglitz insiste num ponto: os governos dos países atingidos pela crise aceitaram as pressões para a desregulamentação e para a liberalização rápidas dos mercados financeiros e cambiais, mantendo, ao mesmo tempo, as práticas de supervisão e fiscalização próprias do regime anterior. Nesses tempos, os bancos limitavam-se a emprestar para as empresas que demandavam crédito para promover suas atividades correntes ou o investimento produtivo.
Seja como for, a história das crises financeiras é quase sempre a mesma: nas etapas de euforia, a confirmação das expectativas otimistas leva os possuidores de riqueza a fazer apostas mais arriscadas, incorporando ativos de menor qualidade em suas carteiras. Esse é o caso dos títulos públicos e privados de países emergentes. Estes costumam oferecer aos investidores internacionais rendimentos muito mais altos do que os apresentados por papéis de mesmo prazo emitidos por governos ou empresas de países mais acreditados.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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