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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Livrai-nos do mal, amém...
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
O entusiasmo generalizado
com a liberalização e a desregulamentação dos mercados financeiros começa a se transformar em preocupação. Os sintomas dessa mudança nos sentimentos do público em geral e dos
chamados especialistas devem ser
buscados no tom mais nítido das
críticas provenientes dos arraiais
ortodoxos. A dúvida e o questionamento têm sido gerais e irrestritos. Agora já são muitos os que
criticam as interpretações que
costumavam atribuir as crises financeiras e cambiais à má gestão
monetária e fiscal de governos
dos países emergentes.
Durante a crise da Ásia em
1997, virou moda jogar a responsabilidade pelas desgraças no "capitalismo de compadres". Mas logo ficou claro para os analistas
menos ideológicos que a trapalhada asiática foi fruto da liberalização financeira, engendrada
na segunda metade dos anos 80
pela ação combinada do Tesouro
norte-americano com o FMI. O
pior para os fanáticos do apocalipse era constatar que os fundamentos fiscais de países como a
Coréia estavam em ordem, como,
aliás, atestavam os relatórios do
FMI. Poucos meses antes da derrocada financeira e cambial, a
OCDE também se derreteu em
elogios à situação macroeconômica do combalido tigre, alongando-se nos encômios à taxa de
poupança agregada.
Os analistas mais badalados da
finança globalizada ficaram desorientados com o caráter privado da crise. É possível adivinhar o
que se passa nas cabeças dos aturdidos: os mercados privados são
"eficientes" e, portanto, os agentes
usam de forma adequada a informação disponível e decidem racionalmente. Sendo assim, os episódios de descontrole financeiro
desse porte só podem ser explicados por desmandos dos governos.
A sucessão de escândalos empresariais nos Estados Unidos
deixou de calças na mão os arrogantes e presunçosos do Primeiro
Mundo ocidental. Digo ocidental
porque muitos juravam de pés
juntos: as encrencas no Japão e a
crise financeira na Ásia eram o
resultado lógico de sistemas bancários concebidos para um "capitalismo de compadres". Coisa de
orientais que descuravam da supervisão e a regulamentação de
seus sistemas bancários.
Mas os fanfarrões descobriram
que o mundo financeiro norte-americano não só está enterrado
até o pescoço nas fraudes contábeis como também desenvolveu
tecnologias formidáveis para tapear os investidores comuns, esquentando ações mal avaliadas
para depois descarregar a muamba no colo dos incautos clientes.
Mais isso não é o pior: tudo indica
que debaixo do angu ainda haja
muito peixe.
Joseph Stiglitz refutou, em artigo recente, a interpretação de que
a crise asiática foi o resultado das
malfeitorias dos governos. Ele
afirmou que "a crise financeira
da Ásia foi o resultado de um
sem-número de fatores que tornaram as economias vulneráveis
a um súbito colapso da confiança.
Os problemas -que incluem a
má alocação dos investimentos, o
endividamento de curto prazo
sem "hedge" e a alavancagem excessiva- decorreram de decisões
financeiras privadas. Em muitos
países, uma liberalização financeira mal administrada eliminou
restrições, inclusive as que proibiam os empréstimos bancários
para empreendimentos imobiliários, antes de colocar em funcionamento um quadro regulatório
adequado. Os críticos [do milagre
asiático] esquecem que uma operação de empréstimo requer um
devedor, mas também um credor.
Os devedores que desperdiçaram
o dinheiro em investimentos improváveis repartem a responsabilidade com os credores, muitos
dos quais são bancos internacionais".
Stiglitz insiste num ponto: os governos dos países atingidos pela
crise aceitaram as pressões para a
desregulamentação e para a liberalização rápidas dos mercados
financeiros e cambiais, mantendo, ao mesmo tempo, as práticas
de supervisão e fiscalização próprias do regime anterior. Nesses
tempos, os bancos limitavam-se a
emprestar para as empresas que
demandavam crédito para promover suas atividades correntes
ou o investimento produtivo.
Seja como for, a história das crises financeiras é quase sempre a
mesma: nas etapas de euforia, a
confirmação das expectativas otimistas leva os possuidores de riqueza a fazer apostas mais arriscadas, incorporando ativos de
menor qualidade em suas carteiras. Esse é o caso dos títulos públicos e privados de países emergentes. Estes costumam oferecer aos
investidores internacionais rendimentos muito mais altos do que
os apresentados por papéis de
mesmo prazo emitidos por governos ou empresas de países mais
acreditados.
Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor
titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos
do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia
do Estado de São Paulo (governo Quércia).
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