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LUÍS NASSIF
Os doces transgressores
No meu tempo de adolescente, período fértil em
agitação política e fermentação de idéias, uma das melhores parcerias no interior era entre nós, os estudantes, e os da
noite, os boêmios amigos que
nos ensinavam os primeiros
movimentos da boemia, apresentavam-nos músicas de bom
gosto, um ou outro modismo
intelectual e o ceticismo noturno contra tudo o que viesse do
dia.
No final dos anos 60, Poços
ainda era uma cidade diferenciada. Nas férias recebia um
turismo algo sofisticado, um
povo de São Paulo que adorava
música de qualidade, que ia
ouvir no Bachianinha, o bar
em que minha geração se iniciou na boemia.
Lá havia o piano especial do
João Viviani, que hoje em dia
compõe choros sofisticados em
Ribeirão Preto. Havia a voz
boêmia do Laércio Brito e a voz
de cantora da noite da Iara,
rouca como uma Nora Ney das
Alterosas. E havíamos nós, os
jovens atrevidos, o piano do
Dartagnan, a bateria do Paulinho Caneta, o violão técnico do
meu primo Oscarzinho e meu
violão capenga.
Mas a parte melhor da noite
nem éramos nós os músicos, os
experientes e os iniciantes, mas
os meus amigos boêmios. Havia o Caio Lobato, dono da memória histórica de Poços de
Caldas, o Chavinho, advogado
e emérito recitador de poemas
de Olavo Bilac. E, claro, as coroas que nos aguardavam no
começo da madrugada, um
pessoal que já tinha passado
dos 25 anos (!) e nos tratava a
nós, meros adolescentes de 18
anos, com respeito, consideração e paciência.
Iara era dona do Bachianinha, uma dona de boteco de
primeira, morena linda, cativante, jeito de índia, que nem
sua irmã Moema. Havia as primas do Zé Grandão, lá de Santa Rita de Caldas, a Dalvinha,
novinha da silva. E havia a Goga, nossa guru maior na companhia inseparável de Fernandinho, ator nas horas vagas,
garçom nas horas noturnas.
Ambos, Fernandinho e Goga,
eram nossas referências quando chegávamos de madrugada
a Poços, depois da semana dura em São Paulo, com sede de
bebida, de Poços e de amigos.
Era perguntar onde eles estavam que o resto da turma estava lá em volta.
Goga era metódica. Começava a noite, ela pagava antecipadamente três ou quatro doses de uísque, enchia o copo de
gelo até a boca, colocava sua
luva de crochê, para evitar o
reumatismo provocado pelo
copo gelado, e ficava bebericando a noite inteira. Tratava-me por "turco". Fernandinho
não era chegado na bebida,
mas derretia-se à noite com as
conversas de bar. Ele me chamava de "Lu".
Foi com eles que aprendi o ritual da boemia, a valorizar os
da noite, a curtir sua conversa,
a me encantar com a falta de
ansiedade e de competição, o
oposto dos homens do dia. É
verdade que havia que se ter
paciência para suportar as crises existenciais que sempre
afloravam depois do terceiro
uísque. Mas fazia parte.
Na época em que nossa turma frequentava o Bachianinha, muitos moralistas de interior iam alertar meu pai para o
risco das más companhias. Só
soube anos depois, porque o velho nunca entrou nesse jogo.
Mas o preconceito era recíproco. Goga e Fernandinho
eram amigos de toda hora, menos na hora de ir a algum ambiente mais "seleto". Aí escafediam. Nada os fazia entrar no
Castelões e outros ambientes
frequentados pela granfinangem poçoscaldense. E posso
afiançar que nossa "elite" nada tinha de enjoada. De qualquer forma, respeitávamos
suas idiossincrasias.
Por isso mesmo, a maior homenagem que já recebi de um
amigo foi quando a Caldense
deu o nome de meu pai para
sua biblioteca, por indicação
do Décio Alves de Morais. Estava em Caxias do Sul de manhã,
não deu teto no aeroporto, tive
que ir de ônibus para Porto
Alegre, pegar avião e desembarcar em Guarulhos, onde o
carro me esperava com a família.
Cheguei em cima da hora, o
salão do clube lotado. Na porta, me esperando, passando
por cima de todas as suas implicâncias, meus amigos Goga
e Fernandinho.
Fernandinho morreu dia
desses do coração. Minha amiga Goga está enfrentando alguns problemas de saúde. Mas
nem venha com falseta, porque
em Corpus Christi vamos em
turma para Poços, relembrar
velhas canções, velhas paixões
e rever os amigos de toda a vida.
E-mail -
Luisnassif@uol.com.br
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