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OPINIÃO ECONÔMICA
De heroísmo só, não se vive
RUBENS RICUPERO
"Já sabemos que o vietnamita é um povo heróico. Temos
agora de provar que ele é também
capaz de superar a pobreza." Em
outras palavras, não se pode viver
exclusivamente de heroísmo. Ouvi
essa proclamação de quem tem
pleno direito a fazê-la, um dos últimos heróis genuínos do nosso tempo. Escrevo a bordo do avião da
Vietnam Airlines que me leva a
Paris. Ontem, dia 20, tive o privilégio de ser recebido pelo general
Giap, quase centenário, lúcido, falando um francês impecável.
Ho Chi Minh, Mao, Chu En Lai
não existem mais. Giap é o único
contemporâneo deles e de Mahatma Gandhi, de Nehru, de Sukarno,
dos personagens de Malraux em
"La Condition Humaine", de Edgar Snow em "Red Star Over China", dos que fizeram a Longa Marcha e conheceram a ocupação japonesa. Foram eles que, com métodos diversos segundo as circunstâncias, prepararam a atual emergência da Ásia, depois de destruírem o jugo e a espoliação dos colonialistas.
Nada demonstra melhor a falsidade da tese do fracasso da independência do que o exemplo asiático. Os neoimperialistas europeus,
sobretudo ex-diplomatas ingleses,
com servilismo que mal dissimula
a segunda intenção de justificar as
pretensões imperiais americanas,
se comprazem em apontar algumas falências africanas em abono
da tese.
Só ocultam que, na maioria dos
casos, na África, o regime colonial
deu lugar não à autonomia autêntica, mas ao neocolonialismo. Esse
se exprimiu e exprime na permanente tutela de forças militares estrangeiras estacionadas localmente, nas assíduas intervenções, até
de mercenários, no jogo das rivalidades consistente em armar e financiar facções opostas no Congo,
em Angola, em Moçambique, em
Ruanda, na Libéria, em Serra
Leoa, com vistas ao controle do petróleo e diamantes, na corrupção
desenfreada em que brilham companhias como a Elf Aquitaine, nos
golpes tramados em países nos
quais recém se descobriu petróleo,
como Santo Tomé e Príncipe, ou
cujos ditadores -o último a ser
denunciado foi o de Guiné Equatorial- encontram santuário para o
dinheiro da corrupção em sisudos
bancos americanos ou ingleses.
Bancos dos países que deblateram
contra a corrupção dos africanos,
mas se guardam bem de permitir
que se ponha fim aos paraísos fiscais.
Na Ásia, na Indochina, a independência foi mais dura, custou luta e se pagou ao preço de milhões
de vidas. Não por escolha ou gosto
perverso da violência. Ho Chi
Minh desejava um processo pacífico. Foram os franceses, a começar
pelo general De Gaulle, que não lhe
deixaram alternativa. A paz,
quando chegou, não veio por causa
da conversão dos corações, mas devido à derrota militar e política.
Mesmo assim, revelou-se precária,
um imperialismo humilhado, o
francês, sendo substituído por outro, o americano, arrogante e cheio
de si mesmo.
É difícil hoje acreditar que a estupidez ocidental tenha durado 30
anos, de 1945 a 1975. Hanói voltou
a encontrar o charme do passado.
É verdade que, no lugar das bicicletas, as milhares de motos soam como um enxame de abelhas zumbindo em direções desencontradas.
Mas é como se fossem cigarras que
não conseguem perturbar a paz
dos arvoredos majestosos, quase
encobrindo as mansões pintadas
de ocre, remanescentes da era colonial, ora sedes de ministérios ou do
Partido. Aqui, o camarada Lênin
continua a presidir sobre a praça
que leva seu nome, e o mausoléu
do tio Ho marca o coração de capital que, apesar de frenética economia, não perdeu o encanto da província.
Há um jeito de Belém, com suas
mangueiras e edifícios de Landi,
com o ar molhado e abafado de
perto do Equador. A casa do general traz saudades daquelas chácaras do Brasil antigo, com sapotizeiros e palmeiras, tamarindeiros
magníficos, jambeiros, o mato crescendo um pouco aqui e ali, a umidade dos trópicos enegrecendo os
muros, cobrindo-os de musgo. Nada de ar condicionado, mas a sala
atapetada de livros, de fotos amarelecidas de Giap jovem, num daqueles ternos brancos que se usavam no Nordeste, ao lado de Ho,
magro como a letra I, de bermudas, ambos na jungla.
Giap é o gênio militar na sua expressão mais árdua e enobrecedora. Árdua porque representa o
triunfo do fraco contra o forte. Sob
o seu comando, o Vietnã venceu a
França, os Estados Unidos, a China. Que exemplo se compara a esse? Enobrecedora posto que se tratou de empresa de libertação nacional, não de conquista, anexação, glória de mandar, vã cobiça.
Perto de nazistas e nipônicos que
cobriram de imperecível infâmia
suas guerras criminosas, dos que
hoje dilaceram mulheres e crianças
árabes do alto de seus aviões invulneráveis, que diferença! Giap era
advogado, não militar, da mesma
forma que Ho foi até confeiteiro
em Paris. Conforme o próprio general me disse a propósito de seu líder, o que eles eram, acima de tudo, se resume nas palavras em desuso, patriota, nacionalista, amante da independência.
Não foram propriamente os profetas desarmados, condenados à
derrota por Maquiavel, mas não
estavam longe disso. Guerreiros de
pés descalços, franzinos seres humanos mal chegando à cintura dos
marines norte-americanos, carregando no ombro ou na garupa da
bicicleta pesadas peças de artilharia, construindo pontes submersas
20 cm a fim de não serem avistadas
do ar, compensaram com tenacidade, estoicismo, motivação o que
lhes faltava em dinheiro ou armas
sofisticadas.
Prevaleceram a um preço quase
insuportável: 3 milhões de mortos,
4 milhões de aleijados ou queimados por napalm, 1 milhão de deformados ou estropiados pelo
agente laranja, 40 mil mortos por
minas desde 1975. As firmas alemães fabricantes do gás de extermínio ou dos fornos crematórios
tiveram de pagar indenização,
mas quem se lembra das empresas
que produziram o agente laranja?
O Vietnã não esquece, mas não
se lamuria. Finda sua guerra de 30
anos, o país começa a sair da pobreza. Como os demais asiáticos, a
Malásia e a Tailândia, por exemplo, tem sabido utilizar os produtos primários como a alavanca da
industrialização. Liberou a pequena agricultura familiar e já superou a Indonésia, tornando-se o
maior exportador de café robusta.
Acaba de conquistar o primeiro
lugar na pimenta, é grande produtor de arroz, borracha, camarão,
peixe. Em 2001, exportou aos EUA
vestuário no valor de US$ 49 milhões; no ano passado, a cifra foi
de US$ 2,5 bilhões! Para a Europa,
as vendas de roupas foram de US$
600 milhões; para o Japão, de US$
500 milhões. Em móveis, a estimativa para este ano é de US$ 750
milhões, e, em calçados, já faz
sombra ao Brasil.
Não tenho dúvidas de que, após
derrotar franceses, americanos,
chineses, os vietnamitas hão de
vencer a pobreza. Têm, para isso,
dois trunfos: um espírito de iniciativa e empreendedorismo, que faz
nascer empresas em cada fachada
de casa, e a paixão pelo estudo e
conhecimento, que os levou a dar
ao principal estabelecimento religioso o nome de Templo da Literatura. Trata-se de combinação imbatível. A razão está com Giap: o
prêmio do heroísmo será a vitória
final sobre a pobreza.
Rubens Ricupero, 67, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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