São Paulo, domingo, 25 de julho de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Mudança e esperança

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

Muda, tudo muda. A acumulação de riqueza muda de natureza e de lugar de acordo com os tempos históricos. As ondas de justiça social alternam-se entre períodos de grande desenvolvimento e de luta pela sobrevivência. Os ricos ganham com maior freqüência e permanência, quer se trate da "Riqueza das Nações" ou das classes dominantes. "Los de abajo" conseguem em situações especiais de grande tensão social e política (superexploração interna e externa, guerras, rupturas da ordem internacional, recessão mundial) a adesão de segmentos das classes médias e de grupos de intelectuais à sua luta por mudanças.
Em certas conjunturas históricas, a esperança se estende por massas crescentes da população, alimentada por transformações econômicas e políticas importantes. A expansão do capitalismo e das lutas político-sociais que o acompanham nunca foram lineares, mas tampouco foram do "eterno retorno" circular. A periodização que cada autor escolhe está muito influenciada pelo tipo de transformação e ruptura que pretende interpretar. A própria visão de longa duração ou de conjuntura é afetada pela localização espacial e ideológica à qual o autor adere, apesar de suas pretensões de "universalidade". Dois livros recentes de grandes autores -"A Era dos Extremos - O Breve Século 20", de Eric Hobsbawm, e "O Longo Século 20", de Giovanni Arrighi- dão um exemplo do que estou me referindo.
Mudança e esperança foram palavras de ordem desde a modernidade ocidental, interrompidas por períodos de conservadorismo e de niilismo. Os períodos de regressão (repressão) foram mais longos quando a "ordem mundial" ficou congelada por alguma forma de "Pax Imperial" com pretensões civilizatórias globais. A "Pax Britannica" já havia levado a "ordem liberal burguesa" e a arrogância das elites coloniais ao extremo. Durante mais de um século, sucederam-se movimentos espasmódicos de rebelião dos colonizados e dos "deserdados da terra", quase sempre derrotados.
Na primeira metade do século 20, duas guerras interimperialistas e uma grande depressão foram acompanhadas de várias revoluções vitoriosas que misturaram todas as tradições seculares de luta (camponesas e populares urbanas). Depois da Segunda Guerra Mundial, a mudança e a esperança pareciam asseguradas para a maioria da "humanidade", embora alguns filósofos europeus de grande prestígio, traumatizados pelas catástrofes que haviam presenciado, continuassem pessimistas (sobretudo os austríacos, os alemães e os franceses).
A metafísica dos filósofos do pós-guerra, diferentemente dos seus confrades do iluminismo, não deu contribuição relevante à utopia da "boa sociedade" ou do socialismo. Os totalitarismos nazifascista e depois soviético foram denunciados, e a "irracionalidade" da sociedade de massas parece tê-los marcado irremediavelmente. Nenhum deles prestou maior atenção às transformações positivas do Estado de Bem-Estar, da social democracia, e, pasme, poucos se entusiasmaram com a descolonização da Ásia e da África. A memória eurocêntrica predominava. Só muito tarde as novas gerações de universitários e ativistas de esquerda se deram conta da Revolução Cubana, do novo imperialismo americano com a Guerra do Vietnã, das demais lutas em países periféricos e de que a perda das suas próprias colônias era justa.
O "marxismo ocidental" tinha abandonado a crítica à economia política a pretexto de combater o "economicismo" e o determinismo histórico. A discussão lançada por Gramsci sobre as possibilidades de luta pela hegemonia moral e intelectual, como forma de abrir caminhos para a conquista do poder em sociedades mercantis avançadas, difundiu-se tardiamente entre os "discípulos italianos". Com o "fetichismo" da mercadoria e do dinheiro avançando a passos largos e a classe operária européia indo ao paraíso do consumismo americano, os filósofos de esquerda refugiaram-se na discussão psicanalítica e "marxiana" intramuros e delegaram na metahistória a chegada do "admirável mundo novo". A partir dos anos 70, a política passou a ser considerada obsoleta. As organizações em "redes" ou os "movimentos sociais" de grande visibilidade midiática entraram na ordem do dia. O futuro tinha de ser inventado a cada momento, e os movimentos de longa duração das lutas sociais prolongadas começaram a perder o significado.
A generalização do pensamento e das políticas neoliberais impostas pela reafirmação da hegemonia norte-americana, a partir da década de 80, além de agravar a crise do pensamento de esquerda, precipitou uma regressão social em várias regiões da antiga periferia capitalista e atingiu os próprios países centrais. As novas migrações de populações empobrecidas se voltaram sobretudo para os EUA e a UE. Esses movimentos de incorporação precária ao mundo desenvolvido facilitaram a desregulamentação do trabalho assalariado justamente onde a tradição de organização era mais forte. A centralização do capital financeiro e o rentismo fizeram o resto.
O movimento expansivo da industrialização deslocou-se para a Ásia, traduzindo-se no aumento da "Riqueza de Algumas Nações", feito, porém, em condições de reprodução regulada pelo Estado. De uma perspectiva de longa duração, o "desenvolvimentismo" do Extremo Oriente representa uma vingança histórica de séculos de opressão colonial. Impossível prever como serão expandidos os direitos sociais de milhões e milhões de camponeses na nova onda de modernização da velha Ásia ressurgente. A discussão sobre "democracia x autoritarismo" (fora de lugar em civilizações milenares como a China e a Índia) raia o absurdo quando a expansão da "civilização ocidental" se dá sob o jugo da nova "Pax Americana", na qual as pretensões universalistas de "liberdade, igualdade e fraternidade" se tornaram novamente inviáveis.


Maria da Conceição Tavares, 74, economista, é professora emérita da UFRJ, professora associada da Unicamp e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet: www.abordo.com.br/mctavares
E-mail - mctavares@abordo.com.br




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