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LUÍS NASSIF
Um cantor clássico
Era um sarau corriqueiro,
com a presença de belos músicos, cantores e instrumentistas.
Como em todo sarau de casa,
numa ponta juntavam-se os músicos e, na outra, os amigos colocando a conversa em dia.
O convidado da noite chegou
meio tarde. Mas quando pegou o
violão e soltou sua voz, imediatamente um silêncio sagrado se
impôs sobre o ambiente. Aliás,
"soltar" é palavra um tanto
brusca para o que se ouviu a seguir. "Estender" seria mais adequado.
Não se tratava de vozeirão que
se impõe pela altura, nem do balanço irresistível do cantor-compositor-violonista de Ribeirão
Preto, que o antecedeu, o Edmilson, que usa por nome artístico
Dimi Zunque, filho musical direto e talentosíssimo de João Bosco,
e que ainda vai dar o que falar.
A voz tinha um timbre raro, indo do agudo ao grave, mas com
tais nuances, tais detalhes, tal
delicadeza que eu não ouvia desde Milton Nascimento.
Nosso grupo de sarau adora a
música, mas é um tanto crítico
em relação à pieguice. Emocionar é coisa que se reserva para
Pixinguinha, e olhe lá.
Mas, pessoal, a emoção que tomou conta do ambiente foi inédita, como a do primeiro orgasmo, do reencontro do filho perdido, de aparição de mãe morta. O
povo ficou aturdido, uns olhando para os outros, se perguntando o que era aquilo.
Aí lembrei da reencenação de
"O Grande Circo Místico", no
ano passado. Fui convidado para escrever a abertura e estava
curioso por ouvir "Beatriz", em
homenagem à qual batizei minha penúltima filha.
A interpretação de Milton Nascimento, acredito, inibiu todo
mundo que veio depois, tal o seu
brilho. A única que ousou regravar foi essa moça bonita, a Ana
Carolina, que pegou a coitadinha da "Beatriz", revirou de
ponta-cabeça, cobriu-a de porradas vocais, de estupros harmônicos, uma coisa de dar pena... da
"Beatriz".
Mas quando o Renato Braz começou a interpretar "Beatriz", o
mesmo silêncio tomou conta do
auditório. Agora, em casa, sem a
mediação dos microfones em
ambientes amplos, só violão e
voz, foi possível captar melhor
ainda a riqueza da sua interpretação. É insuperável!
"Canários"
A história recente dos "canários" brasileiros é bastante pobre.
Até o advento da bossa nova, os
cantores dominavam a cena musical. Eles lançavam os compositores, consagravam as obras-primas, comandavam o processo.
Havia cantores de todos os estilos, e um grupo de cantores românticos, minimalistas, apenas
para ouvidos apurados. Foi o caso de Dick Farney, Lúcio Alves,
Carlos José, Ivon Cury.
Com a bossa nova, os compositores resolveram eles mesmos assumir o comando. O processo se
acentuou com a fase posterior,
com os grandes reservando suas
melhores músicas para si próprios, justamente aquelas que
alimentavam o repertório dos
cantores intimistas.
Também calhou aparecer uma
leva riquíssima de compositores
que eram bons cantores. Alguns,
como Chico Buarque e Edu Lobo, com interpretações personalíssimas, de amplo agrado de seu
público, mesmo não sendo intérpretes clássicos. Outros, como
Geraldo Vandré, Gilberto Gil e,
especialmente, João Bosco, Caetano e Milton, intérpretes dos
maiores.
Três Renatos
O espaço para os "canários" foi
minguando, enquanto o das
cantoras explodia, e elas passaram a dominar a cena. Os homens mantiveram o predomínio
no samba, mas praticamente desapareceram na música intimista. Restou um José Luiz Mazziotti em São Paulo, talento pouco
reconhecido.
Recentemente apareceram três
Renatos para renovar a cena.
Primeiro, Zé Renato, do conjunto vocal Boca Livre (parece que o
Cláudio Nucci, também do conjunto, é um belo cantor). Depois,
o Renato Motha, de quem ouvi
falar em uma lista de discussão
de música na internet. E, finalmente, o Renato Braz.
Com o devido respeito por todos, e com as devidas desculpas
pelas comparações, Renato Braz
nasceu clássico. Já gravou três álbuns, o último deles -"Outros
Quilombos"- com arranjos de
Mário Gil, um paraense que se
tornou espécie de guru da nova
música paulista. Tem 33 anos,
canta na noite desde os 16 anos,
foi adotado musicalmente por
Dori Caymmi, e, na semana passada, se tornou semifinalista do
Prêmio Visa.
Não sei se terá expressão nacional. Assim como a televisão, a
indústria fonográfica emburreceu, fica se repetindo atrás dos
estilos do momento, sem explorar nichos, sem ampliar o leque
de produção.
Mas a história da MPB, aquela
que independe dos ventos da mídia e da indústria fonográfica,
sabe que Renato nasceu clássico,
no mesmo nível dos maiores que
a melhor música do planeta já
produziu.
E-mail - lnassif@uol.com.br
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