São Paulo, quarta-feira, 26 de junho de 2002

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ARTIGO

Brasil não é Argentina, mas pode ter uma bomba-relógio

RICHARD LAPPER
RAYMOND COLITT

DO "FINANCIAL TIMES"

O Brasil está sob pressão. Na sexta-feira, o real despencou à sua pior marca de todos os tempos diante do dólar, antes de se recuperar ligeiramente nas operações da tarde. O ágio sobre os papéis da dívida brasileira aumentou de maneira alarmante. O mercado de ações caiu à sua mais baixa marca deste ano. Os investidores internacionais, ao que parece, estão abandonando o país.
A decisão tomada na semana passada pela agência de classificação de crédito Moody's de rebaixar sua perspectiva quanto ao Brasil alimentou especulações de que o país talvez esteja pronto a seguir o exemplo argentino e decretar moratória. Se o fizer, o resto da América Latina poderia acompanhá-lo.
"O Brasil será o teste da situação latino-americana", diz Arturo Porzecanski, economista-chefe de mercados emergentes no ABN Amro de Nova York. "Deus nos ajude a todos caso o país fracasse", afirma.
Até recentemente, isso pareceria improvável. O país superou os traumáticos eventos de 1998 e 1999, quando o governo se viu forçado a desvalorizar sua moeda. A melhora na situação de muitos outros mercados emergentes torna o sofrimento brasileiro ainda mais intrigante. Assim, o que realmente está acontecendo?
A raiz das preocupações dos mercados é Luiz Inácio Lula da Silva, Candidato à presidência pelo PT. Desde o começo de maio, a vantagem de Lula em relação ao candidato do partido governista, José Serra (PSDB), aumentou significativamente.
Nascido das batalhas sindicais do final dos anos 70, o PT se tornou muito mais moderado ao longo dos últimos dez anos.
Por exemplo, conquistou uma reputação por governo limpo e administração responsável nas cidades e Estados onde venceu eleições locais. Mas a recente caminhada do PT rumo ao centro expôs divisões internas no partido.
Um amplo compromisso para com a estabilidade financeira disfarça as cisões entre as facções do partido. A facção moderada que Lula dirige -conhecida como Articulação- é majoritária no partido, mas tem de enfrentar a oposição de muitos dos militantes de base (300 mil membros), os quais tendem a se opor à economia de mercado e a favorecer uma reforma anticapitalista radical.
Os líderes do partido empregam uma linguagem que reflete as tradições revolucionárias e seria difícil de reconciliar com a economia de mercado. Os princípios econômicos aceitos pelo consenso partidário em dezembro do ano passado falam em "ruptura" com o modelo econômico atual. José Dirceu, presidente do partido e aliado de Lula, diz que o PT representa ""um projeto pós-comunista e pós-socialista em construção".
A despeito de sua experiência local, o PT teria de enfrentar uma curva de aprendizado íngreme caso conquiste o poder nacional. A situação seria um teste complicado de qualquer jeito, mas é possível que o partido herde uma situação financeira deteriorada.
A economia do Brasil teve crescimento quase nulo nos 12 meses até 31 de março, a expansão foi inferior a 0,5%. A dívida pública se expandiu para R$ 685 bilhões, o equivalente a 55,6% do Produto Interno Bruto (PIB). Com taxas de juros de 18,5% e inflação abaixo dos 7% anuais, o serviço dessa dívida é dispendioso. Os pagamentos de juros respondem por cerca de 9% do PIB, o que significa que, para impedir que a dívida se torne um fardo ainda mais pesado, o governo precisa manter um grande e impopular superávit orçamentário no restante de seu orçamento.
Pior ainda, o governo teve de oferecer garantias para convencer investidores a comprar títulos às taxas vigentes. Cerca de 80% da dívida está indexada dessa forma. E mesmo isso ocasionalmente não representa incentivo insuficiente para os compradores de títulos de dívida, o que forçou o Banco Central a adotar papéis de vencimento mais curto.
Como resultado, o volume de dívida a ser pago nos primeiros meses do novo governo é mais elevado do que o governo esperava, o que pode aumentar ainda mais as pressões financeiras. Como diz Eduardo Giannetti, um historiador da economia, "meu medo é que [mesmo que o PT vença" eles herdem uma situação tão crítica que não lhes dará a chance de provar o quanto são diferentes".
Talvez esses temores sejam exagerados. Por exemplo, existem muitas diferenças entre o Brasil e a Argentina, que decretou a moratória de suas dívidas em dezembro passado. Enquanto a Argentina estava presa a uma taxa fixa de câmbio, o regime de câmbio flutuante brasileiro protegeu o país contra o tipo de choque -o dólar em alta ou os baixos preços das commodities- que ajudou a conduzir a Argentina pela rota do desastre. Enquanto a dívida argentina era em sua maior parte denominada em dólares, a brasileira é basicamente doméstica, principalmente denominada em moeda local e detida majoritariamente por instituições brasileiras.
Enquanto a Argentina fracassou seguidas vezes em cumprir as metas estipuladas por seus acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI), as relações brasileiras com o Fundo são excelentes. A administração fiscal vem sendo eficiente, e uma lei de responsabilidade fiscal limita o potencial de gastos excessivos por parte dos governos locais. Na semana passada, o Brasil anunciou que estava reagindo à crise por meio de um saque de US$ 10 bilhões da linha de créditos do FMI.
Além disso, Wall Street está mais preocupada com Lula do que muitas empresas locais. Em 1989, o então presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) Mario Amato disse que os membros do grupo correriam ao aeroporto caso Lula vencesse. Hoje, os líderes empresariais demonstram mais otimismo. Mencionando os diversos acordos que conseguiu com governos do PT em cidades e Estados brasileiros, Luiz Furlan, vice-presidente da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), diz que "tanto os candidatos quanto o setor privado amadureceram. Não existe motivo para uma rejeição a priori".
A vantagem de Lula nas pesquisas de opinião pública não quer dizer que ele vá vencer. Lula esteve à frente nas pesquisas nas três eleições presidenciais passadas, mas terminou derrotado em todos os casos. Faltam ainda mais de três meses para o primeiro turno, e a maior parte dos brasileiros se preocupa mais no momento com a classificação da seleção para a final da Copa do Mundo.
A campanha eleitoral na televisão, que começa em agosto, terá influência decisiva. Menos de um em cada cinco brasileiros é afiliado a um partido, e a propaganda na televisão ajuda muitos dos brasileiros mais pobres e com nível educacional inferior a decidir. Serra terá vantagem no tempo de propaganda na TV, como reflexo da coalizão de centro e centro-esquerda entre o PMDB e o PSDB, que apóiam sua candidatura.
Mesmo assim, para os investidores estrangeiros que talvez jamais tenham visitado a região, os paralelos com a Argentina parecem presságios. E a preocupação é que a percepção deles comece a influenciar os acontecimentos. O ágio entre os bônus brasileiros e os títulos do Tesouro dos Estados Unidos chegou a 15 pontos percentuais esta semana -o mais alto desde 1999, quando muitos investidores temiam o caos financeiro e a volta da hiperinflação. No ano passado, na Argentina, a indecisão política, a estagnação econômica e uma crise fiscal se combinaram para torpedear o presidente Fernando de la Rúa. O Brasil, com sua economia de base mais ampla e sua classe política mais sofisticada, está em posição muito melhor e talvez evite esse destino. Mas todos os seus líderes precisam estar conscientes de que podem ter de desarmar uma bomba-relógio.Como disse Raul Velloso, especialista em finanças públicas, "a combinação de risco político e fundamentos fiscais frágeis é pura nitroglicerina".


Tradução de Paulo Migliacci


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