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OPINIÃO ECONÔMICA
O massacre da inocência
RUBENS RICUPERO
Yeats não se fixou na ira e
na vingança como sinais da
terrível "Second Coming", a "Segunda Vinda". Preferiu, como
prenúncios, os símbolos do caos e
da desordem: o falcão, em seu giro contínuo, não obedece mais ao
falcoeiro; o centro não consegue
impedir a desintegração do círculo; as coisas caem aos pedaços; absoluta anarquia avassala o mundo; a maré turva de sangue afoga
a inocência e se derrama por toda
a parte.
Em tempos de exceção, só o poeta-profeta encontra as palavras
exatas. Chacinas de crianças no
Cáucaso, de meninos de rua ou
mendigos no Brasil, de escolares
nos trens de Madri, nos ônibus de
Israel, de esmagados sob bombas
na Palestina, no Iraque, trucidados em campos de refugiados na
África, viraram banalidades diárias. Antes apanágio de países
malditos, a barbárie e o horror se
instalam no mundo inteiro.
Esse sentimento me dominou
quando, ainda sob o choque de
Beslan, tive de fazer, no dia 14, a
Conferência Raúl Prebisch, que
marcava minha despedida da
ONU e da Unctad. Não me senti
com ânimo de falar muito de comércio, o que me parecia quase
um sacrilégio, e tentei refletir sobre o recente colapso do esforço
internacional para encontrar soluções verdadeiras aos problemas
que ameaçam a vida humana.
Voltei a Genebra para dirigir a
Unctad em setembro de 1995, precisamente na metade do período
pós-Guerra Fria, que se abrira
com a demolição do Muro de Berlim, em outubro de 1989, e seria
abruptamente encerrado pelos
atentados de 11 de setembro de
2001. Menos de 12 anos, metade
de uma geração, fugaz em duração, foi um dos mais intensos em
densidade histórica, isto é, em alta concentração, em poucos anos,
de acontecimentos extraordinários. Da queda do Muro de Berlim
ao desmantelamento da Cortina
de Ferro, da dissolução da União
Soviética à desintegração da Iugoslávia, da pacificação das guerrilhas na América Central à abolição pacífica da muralha do
apartheid, criou-se a impressão
de que, um pouco de tempo ainda, todos os problemas pendentes
se resolveriam: Oriente Médio,
Caxemira, Coréia do Norte, Taiwan.
Mais do que a concentração do
poder em mãos americanas, após
o desaparecimento do polo soviético, o que tornou possível a solução sistemática de dificuldades
aparentemente insolúveis foi outro raro fator histórico: a tendência a uma crescente convergência.
O fim do "comunismo real" não
liquidou apenas o poder geoestratégico da URSS. De um golpe, removeu da cena o elemento de
aguda heterogeneidade existente
desde 1917, durante mais de 70
anos, no sistema internacional: a
ideologia marxista-leninista como princípio de legitimidade e
critério de organização política,
econômica e social radicalmente
diferentes e incompatíveis com os
princípios capitalistas. Suprimida
essa fonte de antagonismo, não
foi difícil a todos ou quase todos
adotarem o mesmo critério de legitimidade -a democracia representativa e pluralista- e padrões similares de organização
política e econômica.
Foi isso que permitiu o autêntico degelo desses anos, capaz de
derreter as estruturas que haviam
mantido imobilizados os graves
problemas internacionais. Acresce que a própria lógica interna do
processo favorecia a busca de soluções de consenso por meio da
colaboração internacional, uma
vez que é da essência da democracia solucionar os conflitos não
com violência, mas por meios institucionalizados e pacíficos.
É interessante que, mesmo nessa época, o domínio econômico se
manteve largamente imune à
abordagem consensual por razão
que tem também a ver com a lógica interna do processo. Com efeito, na área da economia, a convergência se deu em torno do
mercado como princípio organizativo. Ora, os que exaltam o
mercado e tendem a atribuir-lhe
poderes de auto-regulação quase
miraculosos reagem com desconfiança à colaboração internacional para impor limites ao mercado ou corrigir-lhe as imperfeições.
Daí não se ter jamais podido encaminhar soluções consensuais e
internacionais a questões como a
das crises monetárias e financeiras.
O grave depois do 11 de Setembro é que essa tendência à auto-suficiência, à ação unilateral, antes restrita à economia, contaminou o setor político-estratégico,
tornando cada vez mais difícil encontrar abordagens cooperativas
para ameaças como a do terrorismo. A doutrina estratégica do
ataque preventivo unilateral é,
nesse sentido, o equivalente, no
cenário diplomático, à cega confiança no poder do mercado na
área econômica. O que está por
trás da doutrina é a busca para a
população de segurança imediata, tão absoluta como possível.
Para isso, a colaboração internacional é método lento e complicado, incompatível com o impulso
de segurança que, por natureza,
exige resultados de curto prazo.
Estão de volta as divisões, as
dissensões, a heterogeneidade,
tanto a mais extrema e implacável, que é a do fundamentalismo
de Al Qaeda em relação aos EUA,
quanto os matizes de divergência
dentro da aliança ocidental. Nos
problemas mais ameaçadores
-Iraque, Irã, israelenses versus
palestinos, Tchetchênia-, com
personalidades diversas umas das
outras -Bush, Sharon, Putin-,
o comportamento é o mesmo.
Voltou-se ao congelamento dos
conflitos. A paralisia e o impasse
são idênticos aos do tempo da
Guerra Fria. De um lado e do outro, ninguém tem capacidade de
alterar políticas que obviamente
não estão funcionando: a repressão militar ou o terrorismo suicida.
Nesse clima é que deixo minhas
funções. Transcorridos nove anos,
despeço-me de um mundo internacional que não é mais aquele
que me acolheu. Infelizmente, é
um mundo no qual, conforme dizia Yeats, "the best lack all conviction, while the worst are full of
passionate intensity", "os melhores não têm nenhuma convicção,
enquanto os piores estão cheios de
apaixonada intensidade". Parafraseando Lord Grey no início da
Grande Guerra, "a luzes vão se
apagando, uma a uma, em toda a
Terra". Quanto tempo ainda teremos de esperar para vê-las brilhar
de novo?
Rubens Ricupero, 67, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações
Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo
Itamar Franco).
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