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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Desajuste fiscal e abertura financeira
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
É correto afirmar que, nos
idos de 1994, na partida do
Plano Real, a situação financeira
do setor público brasileiro era invejável. Nenhum dos planos anteriores de estabilização contou
com essa vantagem. O ajuste fiscal e o encolhimento do endividamento público antecederam o
Real e foram executados pelo governo anterior. Em 1993, por
exemplo, o governo tinha superávit primário e operacional e tanto
a dívida líquida como a dívida
mobiliária eram quase insignificantes como proporção do PIB
(Produto Interno Bruto).
É preciso recordar que, desde
1995, depois da crise mexicana, a
taxa básica de juros se manteve
num patamar muito elevado para sustentar o financiamento dos
déficits em transações correntes e
a acumulação de reservas. Foram
esses fatores, aliás, e não os gastos
excessivos do governo, como querem alguns, que alimentaram
continuamente a dívida pública
mobiliária. No período de 1992 a
1998, segundo dados do Banco
Central, o governo obteve superávit no conjunto de suas despesas,
incluída a Previdência Social e
excetuados os juros.
Em 1994, o saldo da dívida interna líquida do setor público era
de US$ 65 bilhões. Hoje, o valor
desse estoque, calculado à taxa de
câmbio vigente, está em torno de
US$ 320 bilhões. Isso foi possível
porque o dinheiro de fora que entrava na economia, formando reservas, foi "esterilizado" mediante a emissão de títulos públicos.
Esse estoque crescente de papéis
foi sendo engordado por taxas de
juros reais, que, entre 1995 e 1998,
ficaram na média em torno de
21% ao ano.
A elevada relação dívida/PIB
parece ser a razão maior alegada
pela equipe econômica para
manter em níveis elevados a taxa
Selic. Essa é a versão que aparentemente o ministro da Fazenda
comprou pelo preço que lhe venderam, juntamente com o brinde
do superávit primário e do "inflation targeting".
Em trabalho ainda não publicado, o professor Geraldo Biasotto, da Unicamp, diz que "a máxima de que juros elevados têm raiz
no desequilíbrio das contas públicas não resiste a um mínimo de
reflexão, dado que o controle dos
movimentos de curto prazo do capital externo, a manipulação dos
movimentos dos estoques financeiros e o controle da demanda
agregada foram os elementos determinantes da política de juros
governamental. Já no campo do
chamado ajuste cambial, dois elementos merecem destaque. O primeiro deles é o duplo caráter da
indexação da dívida mobiliária,
que mostra o Estado como gestor
da poupança nacional aplicada
em títulos públicos em momentos
de insegurança sobre seu valor
em dólares. Ao mesmo tempo, o
Estado aparece como o fornecedor de hedge cambial para os
agentes econômicos expostos às
operações em moeda estrangeira,
sejam devedores de moeda estrangeira, sejam operadores de
trocas mercantis com o exterior".
A inclinação das autoridades
monetárias a aumentar os juros
básicos decorre, hoje, em 2004, como deveria ser óbvio, da necessidade de manter em equilíbrio
-para os possuidores de riqueza- as vantagens de aplicar seus
haveres financeiros em reais ou
em dólares. Diante da vulnerabilidade do balanço de pagamentos, as preocupações com a inflação são relevantes apenas na medida em que o BC está determinado a defender um piso para a taxa
de juro real em torno de 10% ao
ano, imaginada como suficiente
para manter o interesse dos possuidores de riqueza nos títulos
públicos denominados em reais.
Apesar do superávit primário em
elevação e dos excelentes resultados obtidos na conta corrente do
balanço de pagamentos, o problema maior continua sendo o endividamento externo e suas relações com as exportações e as reservas líquidas em moeda forte.
Para as economias emergentes,
as mudanças das últimas décadas
não invalidaram, senão confirmaram a afirmação de Keynes no
"Treatise on Money", a respeito
da determinação da taxa de juros
em um ambiente internacional
exposto à livre movimentação de
capitais: "A taxa de juro de um
país é fixada por fatores externos
e é improvável que o investimento
doméstico alcance o nível de equilíbrio" (ou seja, um valor compatível com o melhor aproveitamento dos fatores de produção disponíveis).
Havia uma justa expectativa,
nos tempos do dr. Gustavo: uma
vez corrigida a sobrevalorização
do real, adotados o câmbio flutuante e o regime de metas de inflação, as taxas de juros cairiam
com mais rapidez. A expectativa
era justa, porém ingênua. A ingenuidade deve ser atribuída à aplicação mecânica de pressupostos
sobre as relações entre desvalorização e eliminação do risco cambial num mundo de perfeita mobilidade de capitais. Tais pressupostos são válidos para economias com moeda forte ou de boa
reputação, dotadas de mercados
financeiros amplos e profundos e,
portanto, menos vulneráveis às
mudanças de humor dos mercados financeiros.
Para os países de moeda não
conversível, as taxas de juros e de
câmbio se tornaram mais sensíveis às bruscas mudanças de expectativas dos possuidores de riqueza. Não é de espantar que,
nesse sistema, seja mais freqüente
a ocorrência de problemas de liquidez que dão lugar a amplas
flutuações e crashs nos preços dos
ativos e das moedas.
Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor
titular de Economia da Universidade de
Campinas. Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado
de São Paulo (governo Quércia).
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