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LUÍS NASSIF
A voz do boêmio
De quem é a mais bela
voz da música popular
brasileira? Muitos dirão que
foi Orlando Silva. Haverá os
fãs de Francisco Alves, Dick
Farney e Cauby Peixoto, que
entrariam em qualquer lista.
Entre os sertanejos, havia a
voz poderosa de Pardinho,
uma espécie de Orlando Silva
caboclo. Dos contemporâneos, certamente Emílio Santiago, Dory Caymmi, Caetano
Veloso e Milton Nascimento.
Há dois cantores de vozes excepcionais -Carlos José e José Luiz Mazziotti-, que não
lograram o mesmo reconhecimento dos demais.
Mas não são poucos os que
indicariam Nelson Gonçalves
como a mais bela voz que o
país já teve. Lembrei-me dele
assistindo a um documentário sensível que passou recentemente no Canal Brasil.
Seu repertório não tinha a
universalidade de Orlando
Silva, capaz de atingir todos
os públicos. Mas sua voz atingia todos os tons. Nelson começou a carreira quase como
um sósia vocal de Orlando.
Com esse estilo, Nelson tornou-se o desaguadouro natural de todos os fãs das interpretações românticas dos
quatro grandes do período
anterior: Orlando, Silvio Caldas, Chico Alves e Carlos Galhardo.
No final da década de 50,
Nelson já se libertara da influência original de Orlando
Silva e enveredara por um estilo próprio, cada vez mais
dramático e carregado, que o
afastou, gradativamente, da
chamada parcela "culta" do
público, mas o jogou nos braços do povo e dos boêmios. Ao
pianista Arthur Moreira Lima, Nelson dizia que show
bom era aquele em que o público saía mais cansado que o
artista.
No documentário, há um
depoimento divertidíssimo de
Moreira Lima, que conta a
reação de Nelson Gonçalves,
quando ele lhe sugeriu gravar
"Copacabana", o clássico de
Alberto Ribeiro e João de Barro: "Não gravo, não! É música
de veado!".
Gaúcho de Livramento,
nascido em 1919, seu estilo de
machão gaúcho tornou-se
lendário. Não podia ver mulher na frente. Já no final da
vida, não resistiu ao short de
Elba Ramalho e passou a gravação alisando sua perna
-conforme ela relatou, divertida, ao documentário.
No início dos anos 60, envolveu-se com cocaína e viveu
um inferno comparável ao
dos grandes músicos trágicos
do jazz. Perdeu tudo, inclusive o casamento. Para se livrar
do vício, trancou-se durante
meses em um quarto, sem ver
a luz do dia, alimentando-se
por meio de uma fresta na
porta. Recuperado parcialmente do vício, manteve um
sucesso permanente por décadas e décadas. Seu repertório
registra clássicos, como "Cadeira Vazia", de Lupicínio
Rodrigues ("entra, meu amor,
fica à vontade / me diz com
sinceridade / o que desejas de
mim"), o notável "Cabelos
Brancos", de Marino Pinto e
Herivelto Martins ("não falem dessa mulher perto de
mim...").
Mas sua maior parceria foi
com Adelino Moreira, o compositor da fossa, um clássico
da dor de cotovelo brega. É
dele "A Volta do Boêmio"
("boemia, aqui me tens de regresso"), "Fica Comigo Esta
Noite", "Escultura", ainda
hoje presente no repertório
dos velhos boêmios.
Talvez tenha sido o maior
vendedor de discos da história
da música brasileira. Fala-se
em mais de 2.000 canções gravadas, em 130 LPs. As estimativas sobre o total de discos
vendidos variam de 50 milhões a 75 milhões de discos.
Sua técnica vocal era perfeita. Também vítima da cocaína, Orlando Silva perdeu o
brilho da voz precocemente.
Nelson conservou-o até perto
do final da vida. Dominava
todos os tons, cantava sem esforço e era dono de uma memória prodigiosa.
Lembro-me de um show dele com Fagner, quase ao final
da vida. Fui cumprimentá-lo
no camarim e indaguei-lhe se
conhecia Zé Ratão, um violonista dos anos 40 do qual procuro o rastro há mais de 20
anos. Claro que conhecia e me
deu detalhes do músico.
Morreu em 1998, aos 78
anos. E, num feito inédito na
música brasileira, sua popularidade sobreviveu cinco décadas ao estilo que ele abraçou.
E-mail -
Luisnassif@uol.com.br
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