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ARTIGO
A sutileza de um Estado forte
JOSÉ MÁRCIO CAMARGO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Entre 1930 e 1980, o Brasil viveu uma fase de intenso crescimento econômico. Um crescimento baseado em um processo
de substituição de importações.
Taxava-se a agricultura exportadora e, com os recursos assim obtidos, o Estado investia na criação
de empresas estatais em setores
considerados estratégicos e subsidiava, por meio de incentivos fiscais e creditícios, os investimentos
privados naqueles setores industriais escolhidos. Quando os recursos não eram suficientes, o Estado lançava mão de sua capacidade de se endividar, tanto com
credores nacionais e internacionais quanto com a população
(por meio da dilapidação das reservas do sistema de Previdência
Social, por exemplo).
Ao mesmo tempo em que gerava elevadas taxas de crescimento,
esse modelo de desenvolvimento,
que era calcado no aumento de
intensidade na utilização dos fatores de produção, capital e trabalho, tinha três efeitos perversos.
Em primeiro lugar, concentrava
cada vez mais a renda nas mãos
dos detentores do capital, na medida em que os recursos do Estado eram a eles direcionados, e os
investimentos na população
(educação, saúde etc.) eram sistematicamente deixados em segundo plano.
Em segundo lugar, criava uma
estrutura produtiva extremamente ineficiente e não competitiva,
devido à necessidade de proteção
à indústria nacional decorrente
da política de substituição de importações.
Terceiro, enviava a conta para
as gerações futuras, com o aumento do endividamento.
A crise fiscal do Estado, combinada à crise da dívida externa, inviabilizaram esse modelo a partir
do final dos anos 70. De um lado,
a moratória do início dos anos 80
cortou o acesso do país ao mercado financeiro internacional, forçando a obtenção de elevados superávits na balança comercial. De
outro, dado o alto grau de ineficiência e o baixo nível de competitividade da indústria brasileira, a
obtenção de superávits comerciais somente era possível com
maior proteção comercial e forte
redução das importações. Os resultados foram redução da produtividade e da competitividade,
baixas taxas de crescimento, aceleração inflacionária permanente,
aumento da pobreza e maior concentração da renda.
Se, por um lado, a abertura da
economia e a renegociação da dívida no início dos anos 90 gerou
um aumento da produtividade e
da eficiência no setor produtivo,
devido ao aumento da concorrência, por outro, criou as condições
para que o Brasil voltasse a ter
acesso ao mercado internacional
de capitais. Foi a combinação destes dois fatores que viabilizou a estabilização da economia em 1994.
Porém essa mudança de rumo
significou a adoção de um novo
modelo de desenvolvimento.
Nesse novo modelo, o Estado
tem um papel muito diferente do
modelo anterior. Em lugar de executar e promover os investimentos pelas empresas estatais e por
incentivos fiscais e de crédito aos
investidores privados, a função
do Estado passou a ser gerar incentivos com mecanismos de
mercado, que sejam capazes de
induzir os empresários privados a
investir nos setores que tenham
maior capacidade de produzir eficientemente e sejam competitivos.
Como nossas instituições foram
desenhadas para sustentar um
modelo de estado intervencionista, reformá-las tornou-se fundamental para que os mercados
dêem os sinais corretos aos empresários e aos trabalhadores e os
investimentos, tanto em capital físico quanto em capital humano,
sejam realizados de forma eficiente. Daí a necessidade das reformas
microeconômicas, como a nova
Lei de Falências, a reforma da legislação trabalhista, a reforma da
legislação tributária etc. Sem elas,
a competitividade da economia
diminui e ela não cresce.
Ou seja, o Brasil está transitando de um modelo de economia de
comando, com planejamento estatal impositivo e concentrador
de renda, para um modelo no
qual a indução por mecanismos
de mercado é a mola mestra do
crescimento. E, nesse novo modelo, além de reformar as instituições de tal forma a fazer com que
elas tenham o papel de induzir eficiência na alocação de recursos,
cabe ao Estado direcionar os recursos fiscais disponíveis para
aqueles setores nos quais o investimento tem uma taxa de retorno
privada menor que a taxa de retorno social, como educação, saúde e ciência e tecnologia. Um papel mais sutil do que no modelo
anterior, porém mais sofisticado e
não menos importante.
A concentração dos investimentos do Estado em setores como educação, saúde e ciência e
tecnologia, tem três efeitos importantes, no longo prazo. Primeiro, transforma o país de um
país com oferta abundante de
mão-de-obra não qualificada em
um país com oferta abundante
em mão-de-obra qualificada. Como resultado, no longo prazo, o
país se torna competitivo na produção de bens e serviços de alto
valor adicionado (como, aliás,
ocorreu nos países do leste asiático). Segundo, reduz a desigualdade da distribuição da renda e a pobreza. Finalmente, melhora a eficiência na alocação de recursos e,
portanto, aumenta a competitividade e a taxa de crescimento de
longo prazo da economia.
O problema é que implementar
um novo modelo de desenvolvimento leva tempo. As resistências
daqueles que se beneficiavam do
modelo antigo e que não mais se
beneficiam do novo são grandes.
Agentes que se acostumaram a
obedecer ao comando do Estado
se sentem perdidos quando têm
que fazer suas próprias escolhas
diante de sinais de mercado que
precisam ser analisados e decifrados com cuidado. E a resistência
aumenta, à medida que o novo dá
sinais de sucesso, algo que começa a ficar claro no Brasil. O salto
qualitativo da agropecuária brasileira nos últimos anos, um resultado direto da abertura comercial,
fim da transferência de renda da
agricultura para a indústria, investimento em ciência e tecnologia e a capacidade de gerar superávits em conta corrente com elevadas taxas de crescimento do
produto, são alguns sinais claros
de que o novo começa a dar os resultados desejados. E é neste momento que a persistência no caminho escolhido, apesar das resistências redobradas dos perdedores, será capaz de gerar crescimento sustentável com melhor
distribuição da renda.
José Márcio Camargo é professor do
Departamento de Economia da PUC-RJ e
sócio da Tendências Consultoria
Integrada.
O artigo do professor José Márcio Camargo vem compor debate sobre "neodesenvolvimentismo" levantado, no domingo passado, na Folha por uma entrevista do empresário Antônio Ermírio
de Moraes e por um artigo do professor
Luiz Carlos Bresser-Pereira.
Leia o artigo e a entrevista em
http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u89312.shtml
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