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OPINIÃO ECONÔMICA
A perda da inocência
RUBENS RICUPERO
A reunião de Madri para financiar a ocupação iraquiana e o memorando em que o secretário de Defesa Rumsfeld se
pergunta se os EUA estariam ganhando ou perdendo o pós-guerra no Iraque e no Afeganistão são
expressões da perda da inocência
(ou das ilusões, se se preferir) que
caracteriza este duro início de século. A intratável realidade do
Oriente Médio desmontou em
poucos meses a auto-suficiência,
obrigando os americanos a reconhecer por palavras e atos que o
poder unilateral não basta. Do
mesmo modo, o atentado contra
Sérgio Vieira de Mello e seus companheiros em Bagdá liquidou para sempre a inocência da ONU, o
falso sentimento de que ela não
precisava de proteção porque encarnava a causa da humanidade.
A ilusão sobre a quase onipotência americana dissipou-se
mais depressa que as relativas ao
"fim da história" ou aos benefícios de uma globalização supostamente capaz de, por toda parte,
consolidar prosperidade e democracia. Mais uma vez se comprova que as transformações históricas, ainda as melhores, trazem
embutida a podridão, assim como a vida tem dentro de si a semente da morte.
Os livros de tese sobre o "novo
Império" que proliferaram desde
2001, epígonos ou derivação generalizada dos clássicos da teoria do
imperialismo, de Hobson e Hilferding a Lênin e Rosa Luxemburgo,
não tiveram comparável originalidade ou talento para captar as
diferenças do fenômeno atual.
Em comum com os ultra-reacionários americanos, partidários
do ativismo militar e intervencionista de Washington, embora em
sentido contrário, tendem a
igualmente ignorar ou subestimar o peso decisivo que as limitações econômicas e de tropas acabarão por impor a essa militarização da política externa.
Desde a abolição do recrutamento obrigatório, 30 anos atrás,
os EUA dispõem apenas de um
exército de voluntários e dependem de reservistas da Guarda Nacional. Esse recurso tem sido acionado de forma cada vez mais frequente. Entre a Primeira Guerra
Mundial e a Guerra do Golfo, em
1991, houve nove mobilizações da
reserva em 75 anos. A partir de
então, em pouco mais de uma década, as reservas já tiveram de ser
mobilizadas dez vezes. No caso da
Força Aérea, mais de um terço
dos combatentes no Iraque pertencem à Guarda Nacional, porcentagem que ultrapassa a metade quanto aos fuzileiros navais.
Como os reservistas ganham mais
na vida civil e enfrentam dificuldade em sustentar as famílias
com o soldo militar, é compreensível que apenas 49% das reservas
cogitem de realistamento futuro.
Os EUA mantêm 135 mil soldados no Iraque, número insuficiente. A fim de aumentá-los até 200
mil, teriam de desguarnecer a Coréia do Sul e a Bósnia. Imaginem
se resolvessem atacar a Coréia do
Norte ou outro "Estado-bandido"! Forças militares compactas
podem ganhar guerras rápidas
contra adversários fracos na base
da parafernália tecnológica. Ocupar o território, contudo, exige
efetivos numerosos e dispostos a
sofrer desgaste contínuo.
Os limites impostos pela capacidade da economia agravam mais
o panorama. Os EUA passaram
de um superávit orçamentário de
US$ 240 bilhões a um déficit de
mais de US$ 400 bilhões em três
anos, sem computar os US$ 87 bilhões solicitados para o Iraque.
Não faz muito tempo, previa-se
excedente acumulado de US$ 5
trilhões a US$ 6 trilhões para a
década que termina em 2013.
Agora, as projeções são de déficit
entre US$ 1,8 trilhão e US$ 4 trilhões. Com o déficit externo em
mais de US$ 600 bilhões, a economia precisa atrair recursos estrangeiros ao ritmo de cerca de
US$ 2,8 bilhões por dia!
Recente estudo de economistas
da UBS Warburg indica como
vem se agravando o peso dos gastos militares. O orçamento militar
em sentido amplo -não só defesa externa mas também segurança interna, reconstrução, programas de ajuda militar- era de
10% do PIB nos anos 50, diminuindo para 5%, 6% na década
de 80. Graças ao "dividendo da
paz", após o fim da Guerra Fria,
chegou a 3%, o ponto histórico
mais baixo, em 2000 (não por
acaso, o ano do grande saldo orçamentário), com previsão de
baixa adicional.
A tendência se inverteu com o
atual governo e, após os atentados terroristas, saltou a 3,5%. O
estudo projeta que essa cifra deverá dobrar no futuro próximo e poderá atingir 8% a 9% do PIB. Se
isso ocorrer, não seria possível
manter as reduções de impostos,
que teriam de sofrer acentuado
aumento. A alternativa seria reprimir as despesas domésticas a
níveis politicamente insuportáveis ou deixar explodir o déficit
do Orçamento.
É saudável às vezes baixar das
alturas exaltantes das elucubrações sobre o novo Império à realidade prosaica da aritmética. Algumas contas simples de somar e
diminuir bastam para mostrar
que, com um déficit gêmeo de 5%
a 6% do PIB, no Orçamento e nas
contas externas, e reduzidos a um
exército de voluntários, os americanos estão longe não só dos romanos mas até dos britânicos da
era vitoriana, quando Londres
montou o Império na base de seguidos e volumosos excedentes no
balanço de pagamentos.
A tirania dos números é incompatível com a repetição infindável
de invasões como as do Afeganistão e do Iraque. Não é outra a explicação para a resolução do Conselho de Segurança e a reunião de
Madri: o governo dos EUA necessita dos recursos simbólicos da
ONU em termos jurídicos e políticos e precisa do aporte concreto
de terceiros em tropas e dinheiro,
talvez não para pagar a conta inteira como na Guerra do Golfo de
1991 (US$ 60 bilhões), mas parcela substancial dessa fatura.
Multiplicam-se os sinais de que
a confiança inicial está trincada e
que principia um autoquestionamento, como o que transparece
no memorando no qual o chefe
do Pentágono se interroga sobre
os resultados da presente orientação. Apesar de embaraçosa para
a propaganda governamental, a
autocrítica é salutar, sobretudo
porque vem a se somar a outros
indícios de mal-estar, tais como a
tendência desfavorável das pesquisas, a resistência do Congresso
aos créditos adicionais e até fatos
menores, como a recusa de regressar ao Iraque de 29 militares.
Mais significativas são as decisões de retirar do Pentágono a supervisão da ocupação e a ascensão do secretário de Estado Colin
Powell após o êxito no Conselho
de Segurança. O efeito cumulativo disso tudo, mais o do debate da
campanha eleitoral, torna razoável imaginar que a postura agressiva pós-11 de Setembro não deverá sobreviver às eleições, salvo se
houver fatos novos de gravidade
análoga à dos atentados. Em parte, isso ocorrerá devido à perda
das ilusões, mas em parte em razão de fato que termina, cedo ou
tarde, por impor-se: o de que, em
circunstâncias não-excepcionais,
a diplomacia custa invariavelmente mais barato que a guerra e
a ocupação.
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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