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LUÍS NASSIF
O medo brasileiro
A beatriz , minha filha de
cinco anos, me disse outro
dia que acorda de noite com
medo, por causa de "sonho
ruim". A Mariana, de 23, também passou por esses medos.
Mas tinha uma babá que a embalava ao som de "boi, boi, boi
do curá / pega essa menina que
não quer mamá".
O medo sempre fez parte da
nossa cultura. Foi companhia
permanente das nossas infâncias, muitas vezes trazido por
babás e empregadas e suas histórias maravilhosas.
Menino ainda, provavelmente
com a idade da Beatriz, tinha
"sonhos ruins". Imaginava o
vendedor de amendoim fazendo plantão na frente de casa, em
plena madrugada. A casa, então, não tinha grades e dava para o largo do São Benedito, um
enorme terreiro onde, nos meses
de abril e maio, os congos traziam seus cantos rituais. Mas
nem os espíritos dos congos que
povoavam o São Benedito nos
protegiam do medo do vendedor de amendoim.
Espalhou-se na época que o
vendedor de amendoim era "tarado". A gente imaginava que
ele entregava amendoim enfeitiçado para os meninos, que, depois de ficar grogues, eram algemados e chicoteados. Nosso conceito de tarado não ia muito
além disso.
Quando minha avó Martha e
minha tia-avó Mariana se reuniam com minha mãe, aí o medo e a tragédia corriam soltos.
Eu ficava encolhido enquanto
elas contavam a história da linda normalista de São Paulo, que
pegou o ônibus para casa, foi seguida por um marginal que a
matou. Os crimes eram tão escassos na época que cada qual
rendia uma novela caseira. São
Francisco de Assis e o Sagrado
Coração de Jesus me ajudaram
a enfrentar os pesadelos que
sempre se seguiam aos "causos"
das três.
Nos anos 50, em Poços de Caldas, estávamos a léguas de distância de ter medo de ET. Nosso
medo era concreto, de personagens que habitavam as fazendas
-como sacis, caiporas, lobisomens e mulas-sem-cabeça. Tio
Zito Vilela quase quebrou
quando descobriram uma criação de sacis em sua fazenda em
São Sebastião da Grama e houve uma debandada de colonos.
A história da região começou
a mudar lá pelo início dos anos
70. Fui a São Tomé das Letras a
serviço, por ocasião daquele
fiasco que foi a visita do cometa
Kohoutec, para saber o que os
moradores achavam do astro,
da perspectiva de fim do mundo
e dos teosofistas que se mudaram para lá atrás de uma carona de disco voador, antes que o
tal do mundo se acabasse.
Subi a pedreira, abri a porta
da igreja, dei de cara com a pintura de um barão de olhar alucinado. Ao lado, uma velhinha
quase nonagenária que tomava
conta da igreja. Indaguei se era
verdadeira a história. "É verdade", confirmou. "E eles viram
algum disco voador." A velhinha, taxativa: "Nenhum". "E a
senhora, já viu algum?" E ela,
com ar de enfado por trás das
lentes grossas dos óculos: "Eu?
Estou cansada de ver".
Foi o período em que os sacis
começavam a ser expulsos do
sul de Minas pelos discos voadores. Era o prenúncio do ET de
Varginha.
Com o tempo, esses medos
maravilhosos, mágicos, parte
intrínseca da cultura brasileira,
parte essencial de um país que
ainda não se urbanizara, vão
cedendo lugar a outras formas,
mais contemporâneas e cruéis
de medo.
Primeiro, o medo de enfrentar
a metrópole, a primeira profissão, o medo das primeiras opções de vida. Em muitos, vi o
medo do desemprego.
Nos anos 70, havia o medo
permanente da tortura, pelo
menos na nossa profissão.
E quem era o pai que nos confortava a todos? Quem me refresca a memória é o leitor Celso
Dival Moreira Lima, que me enviou e-mail sobre o caso Galdino, desses de a gente guardar
para sempre, sobre a necessidade da coragem para enfrentar o
estabelecido, a unanimidade e a
sede de sangue: "O maior cristão, talvez o único que eu conheço é Dom Paulo Evaristo
Arns, que teve até parte da sua
igreja voltando-se contra ele por
ser o porta-voz dos oprimidos.
Um preso político certa vez comentou: "Ele colocava a mão em
meus ombros e falava apenas
três palavras: coragem, coragem, coragem". Essa é a única
oração que eu até hoje aprendi".
E-mail -
Luisnassif@uol.com.br
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