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OPINIÃO ECONÔMICA
Presente à criação
RUBENS RICUPERO
Cognominado "o Sábio",
Afonso 10º, rei de Castela,
não fez jus à reputação, ao menos
no tema deste artigo, posto que
aviltou a moeda, ocasionando
grave crise econômica para o reino. Nem por isso deixou de ostentar sua imodéstia, declarando: "Se
eu tivesse estado presente à criação, teria dado alguns palpites
úteis sobre a maneira de melhor
organizar o universo". Dean
Acheson, secretário de Estado de
Truman, gostou do topete e deu a
suas memórias o título de "Present
at the Creation", referência ao
momento após a Segunda Guerra
em que os americanos recriaram o
mundo.
Minhas pretensões não alcançam tão alto, pois, em relação aos
mais de dez anos do Real (se recuarmos seu início à proposta da
URV, em fevereiro de 1994), fui como esses convidados que chegam
tarde ao banquete e partem logo
depois do prato principal. Nada
posso assim dizer do "antes" e "depois" da introdução da moeda,
único período do qual tive experiência direta como protagonista.
Tampouco vou repetir o que já
afirmei em entrevistas e artigos sobre a quem cabem os méritos principais: ao presidente Itamar primeiro, a Fernando Henrique Cardoso, como ministro e, mais tarde,
presidente, e à equipe que, com
uma ou outra mudança, acompanhou o esforço do começo ao fim.
Essa listagem já permite concluir
que o Real, como toda construção
histórica duradoura, foi obra coletiva, embora alguns, conforme
sempre sucede, tenham sido os intérpretes e mandatários das aspirações da coletividade. É esse o aspecto que tenciono realçar: o da
vitória contra a hiperinflação como fruto de uma cidadania mobilizada e participante. Como foi
que se chegou a esse resultado? É a
história que desejo contar.
Quando, em fins de março de
1994, o presidente Itamar determinou que eu sucedesse a Fernando
Henrique, a prioridade absoluta
era, para usar expressão muito relembrada semanas atrás, escolher
o dia D, isto é, a data para a introdução da nova moeda, logo fixada
em 1º de julho. Ao assumir eu o
ministério, começava a contagem
regressiva de 90 dias para preparar operação que, em um país-continente de quase 9 milhões de
km2 e mais de 170 milhões de habitantes, só tem paralelo, nos tempos
modernos, no lançamento do euro
na União Européia.
Pedi a dois amigos, Gelson Fonseca, hoje embaixador no Chile, e
a Marcos Galvão, ora ministro-conselheiro na embaixada em
Washington, que fossem a Belo
Horizonte e a São Paulo, a fim de
sentir o clima da opinião pública
em relação às mudanças econômicas. Após consultar os oráculos de
praxe, voltaram com o veredicto: o
plano impressionava favoravelmente, parecia competente, mas
ninguém o entendia bem. Por
exemplo, esse animal abstruso, a
URV, continuaria vigente juntamente com o real ou desapareceria? E como se faria a conversão
da velha para a nova moeda? Em
conclusão, os gurus eram categóricos: o plano precisava ser explicado à população, de cujo apoio dependia, e ter uma cara. De preferência, a do presidente.
Fui falar com o presidente Itamar, que preferiu que eu me incumbisse da campanha. Ele tinha
razão. Ministro, conforme lembra
meu querido amigo Fábio Konder
Comparato, é palavra que vem de
"minus", menos, menor. O plano
era incerto. Se fizesse água, o melhor seria preservar o presidente
para outra tentativa. Foi nesse
sentido que o marechal Joffre disse, a propósito do Marne. "Quem
ganhou a batalha não sei, mas sei
muito bem quem a teria perdido."
Sempre soubemos que não seria
simples e que não poderíamos
contar com marqueteiros, pois, de
saída, esbarramos no problema
das verbas, que eram escassas. Alguém veio com a idéia de usar recursos do Funcheque, do Banco
Central, mas aí topamos com barreira intransponível: os prazos mínimos da lei de licitações. Fazendo
da necessidade virtude, tivemos de
operar com os meios modestos da
Radiobrás, gravando mensagens
retransmitidas por cadeia nacional na hora do almoço, a fim de
não irritar a população, interferindo com o culto sagrado da novela. Devo dizer que as emissoras
de rádio e TV ajudaram com imaginação e talento, o mesmo fazendo os jornais.
Fora a jornalista Maria Clara do
Prado, que mais tarde se juntaria
ao nosso time, éramos todos amadores. Meus colegas Sérgio Danese
e Marcos Galvão, diplomatas como eu, me ajudavam na estratégia da comunicação e nos textos.
De início, não tínhamos idéia de
como se lida com a TV, meio intimidador que requer tom casual,
postura natural e discreta, fala
simples e direta. Com os membros
da equipe econômica, decidíamos
qual a mensagem a passar naquele instante: o critério da conversão,
a conveniência de adiar as compras para evitar o ocorrido no Plano Cruzado, o conselho para esperar, não comprar pelo crediário
porque os juros estavam altos demais, aguardar que os preços caíssem, valorizar o troco e as moedas.
O primeiro texto, mais técnico,
era reescrito uma e mais vezes, até
encontrar a linguagem clara e direta, as palavras simples do cotidiano, o argumento da vida concreta, que respeitava a inteligência
do povo. Banimos o "economês"
hermético das diagonais exógenas. Checávamos o texto dos discursos com gente simples, mas
cheia da sabedoria prática que dá
a luta diária. Íamos à feira livre
dialogar com os feirantes e os fregueses, para que todos soubessem
o que estava aumentando de preço e o que era mais acessível, como
aprender a usar o poder do consumidor de modo racional, onde reclamar e obter proteção contra os
abusos. Viajamos por vários Estados -alguns onde nunca havia
estado um ministro da Fazenda.
Falávamos diretamente à dona-de-casa, ao aposentado, ao estudante, ao trabalhador.
A resposta foi fulminante e extraordinária. Não se tratava apenas do fruto da informação abundante, fornecida na hora certa.
Era também a alegria de saber-se
indispensável, de compreender
que o plano não tinha mágica
nem agia sozinho, mas dependia
de cada um, dos gestos, ações, decisões de milhões de donas-de-casa, de trabalhadores anônimos,
cuja somatória faz a economia,
tanto quanto os burocratas, os industriais e banqueiros.
Um pouco disso tinha estado
presente no Plano Cruzado, com
os fiscais voluntários. Dessa vez,
não havia congelamento de preços
e o processo era mais difícil, pois
envolvia toda a complexidade de
ações e omissões dos brasileiros,
que determinariam se o plano daria certo ou não.
Deu certo, estou convencido,
porque o povo se mobilizou e, no
fundo, a implementação da moeda converteu-se na cidadania em
ação. É, portanto, incomparavelmente mais do que a comunicação, a informação, cuja transmissão pode às vezes limitar-se a uma
via de senso único, na qual um dos
lados não sai de sua passividade.
O que se viu, no caso, foi a verdade
da frase de Norbert Wiener: "Ser
informado é ser livre". Informadas, as pessoas tiveram a liberdade de tomar nas mãos o próprio
destino e escolheram libertar-se da
hiperinflação. É uma lição para
estes tempos, nos quais muitos
perdem a fé na democracia porque sentem que votar não faz diferença, que o povo é supérfluo num
regime no qual as traições ao eleitorado não encontram sanção. É
também convite a retomar a
"construção interrompida" do
projeto de Brasil, para o qual o restabelecimento da autonomia da
moeda nacional é como o pedestal
de monumento que ainda não fomos capazes de levantar.
Rubens Ricupero, 67, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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