|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LUÍS NASSIF
O estadista do Brasil
O momento em que se escolhe o novo presidente do
Brasil é boa hora para avaliar os
antecessores. Quem foi o maior
presidente do Brasil? O tempo
tende a decantar as críticas, a
minimizar os erros e a valorizar
os acertos, mas, dependendo da
preferência política, quase inevitavelmente os analistas se dividirão entre três nomes: Getúlio, JK e FHC.
Sempre será possível minimizar a importância de Vargas,
mencionando a pesada herança
fascista que legou. Ou a irresponsabilidade fiscal de JK,
abrindo as portas para a crise
econômica do período seguinte.
De Fernando Henrique Cardoso
se lembrará do desastre do câmbio, da despreocupação com o
desenvolvimento, do fato de ter
desperdiçado uma conjugação
de fatores internacionais favoráveis poucas vezes vista.
Mas todos cumpriram papel
político relevante, mudando para sempre a face do Brasil. Com
Vargas, o país começa a se industrializar, o Estado a se organizar. Com JK, o Brasil descobre
o futuro e a industrialização.
Com FHC, ingressa em uma era
de modernização política.
Mas ousaria afirmar que meu
candidato a estadista do século
foi o marechal Humberto Castello Branco, primeiro presidente
do governo militar que usurpou
o poder em 31 de março de 1964.
Eu era adolescente quando
ocorreu o golpe e o marechal
tornou-se presidente. Ele tinha
raízes mineiras através de dona
Argentina, sua esposa, que era
irmã de "mère" Inês, a severa
professora de português do colégio São Domingos, que despertou a paixão de Drummond,
chegou a noivar com Negrão de
Lima para, finalmente, encontrar a paz na congregação dominicana e nas suas aluninhas,
tão bonitinhas com seus vestidos plissados. Presidente, o marechal virou alvo direto das nossas verrinas, das paródias, piadas, embora não chegassem aos
pés daquelas inspiradas pelo
marechal Costa e Silva.
Mesmo representando a ditadura, havia um quê simpático
no marechal. Talvez a feiúra,
que era maiúscula, a falta de arrogância. Uma ou outra informação positiva sobre ele sempre
vazava através da pesada e justificada rede de preconceitos
que nos cercava em relação a tudo o que vinha "do lado de lá".
Dizia-se que havia tido papel relevante na campanha da Itália,
que era estrategista primoroso,
que não pensava em perpetuar
o poder militar, que tinha idéias
reformistas.
Seu governo não foi fácil. De
um lado, tinha de administrar a
linha-dura do Exército, liderada por Costa e Silva. De outro, o
poder civil, não apenas os seguidores do ex-presidente João
Goulart, mas também os antigos aliados civis. Pela frente, vinha uma crise gigantesca, com
inflação, estagnação, máquina
pública destruída pela fisiologia.
No plano político, o marechal
montou uma estratégia à altura
de Clausewitz. Tomou medidas
fortes, os primeiros atos institucionais, cassou políticos da oposição e, em um certo momento,
degolou a mais importante liderança civil do país, o ex-presidente Juscelino Kubitschek.
No plano econômico, cumpriu
o papel de reformador, graças a
um desprendimento político
que nem JK nem FHC foram capazes de ter: o de afrontar incompreensões, não temer a impopularidade, para plantar sementes que só frutificariam
anos depois.
Castello consolidou as melhores idéias germinadas na década anterior. Cercou-se de quadros tecnocráticos primorosos,
lançou o primeiro plano de estabilização consistente do período, tendo de administrar enorme insatisfação popular, dentro
de um quadro político não consolidado. Com ele, houve a modernização da Receita, da legislação trabalhista, o deslanche
do BNDES, a criação da Finep,
do Banco Central, políticas voltadas para o desenvolvimento e
para a inovação.
Fracassou na política agrária
e no plano político. Ao promulgar atos institucionais, cassar
pessoas, sua intenção era limpar
rapidamente a área, anular a
pressão dos radicais e devolver o
poder aos civis. Evitou um banho de sangue que a linha-dura
pretendia, mas abriu a caixa de
Pandora para 20 anos de poder
militar.
Ousaria dizer que, por sua visão de futuro e desapego ao poder, o que Castello fez em dois
anos foi muito mais do que uma
transição: foi o grande trabalho
de estadista do século.
E-mail - lnassif@uol.com.br
Texto Anterior: Ligações contemporâneas: O outro Brasil que vem aí Próximo Texto: Panorâmica: Estagnada, economia japonesa ruma para o quarto ano consecutivo de deflação Índice
|