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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
O outro Brasil que vem aí
MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
Todo brasileiro poderá dizer: é assim
que eu quero o Brasil,
todo brasileiro e não apenas o bacharel ou o doutor
o preto, o pardo, o roxo e não apenas
o branco e o semibranco.
Qualquer brasileiro poderá governar
esse Brasil
lenhador
lavrador
pescador
vaqueiro
marinheiro
funileiro
carpinteiro
contanto que seja digno do governo
do Brasil
que tenha olhos para ver pelo Brasil
ouvidos para ouvir pelo Brasil
coragem para morrer pelo Brasil
ânimo de viver pelo Brasil
Extrato do poema de Gilberto Freyre, de 1926, in Freyre, G., Talvez
poesia. RJ. José Olympio, 1962
Desterritorializados e
"desclassados", os trabalhadores brasileiros não tiveram representação política duradoura
capaz de um enfrentamento sistemático que pudesse romper o pacto de dominação oligárquico e
conduzir a uma ordem democrática disposta a pactuar os conflitos
fundamentais, e não apenas a
propor sucessivos pactos conservadores.
Nossa peculiar "hegemonia burguesa", começada há 150 anos
com a promulgação da Lei de Terras e o Código Comercial, regulou
a propriedade e os negócios de forma a garantir um pacto de dominação social férreo entre os donos
da terra, o Estado e os donos do dinheiro, que se caracterizou, do
ponto de vista político, por uma
oscilação permanente entre uma
ordem liberal oligárquica e um
Estado autoritário.
Nossas "transições democráticas", além de periodicamente interrompidas, nunca alteraram o
caráter concentrador da acumulação da riqueza e da renda e a
marginalização econômico-social
de uma massa crescente da população. Daí a impressão sistemática
de que os ideais reformistas ou revolucionários estavam sempre
"fora de lugar", no dizer de Roberto Schwartz. Na verdade, as idéias
postas em prática pelas elites dominantes estiveram sempre no lugar: manter o poder econômico e
político a qualquer custo, mesmo
abrindo mão dos seus princípios
"liberais" em economia e, sobretudo, em política. Para manter a
concentração do capital e da terra, nunca deixaram de recorrer ao
patrimonialismo e ao endurecimento político do Estado. Nem a
Proclamação da República nem a
Revolução de 30 conseguiram
construir uma nação democrática
e independente do ponto de vista
dos interesses das classes subordinadas.
Os avanços populares foram
sendo conquistados, palmo a palmo, e várias organizações de trabalhadores foram surgindo com
as mudanças estruturais no campo, na industrialização e na urbanização. Os efeitos sociais e políticos dessas mudanças só puderam
ser controlados pelas classes dominantes por meio de golpes militares. A fundação do PT ocorreu há
22 anos, no auge do movimento de
massas e da luta pela redemocratização.
A originalidade histórica do PT
está na sua própria formação.
Juntou quadros dos movimentos
sociais de base (trabalhadores rurais e urbanos), foi fundado e dirigido por quadros de movimento
operário renovado e incorporou
desde grandes intelectuais até militantes provenientes de diversas
frações dos pequenos partidos de
esquerda. Nasceu com um programa de socialismo democrático por
oposição ao chamado "socialismo
real" antes mesmo da derrota histórica da União Soviética. Manteve a democracia interna no que
tange à discussão ideológica e à
organização de tendências, mas os
chamados moderados, com Lula
na cabeça, foram sempre as lideranças mais importantes do partido. A experiência parlamentar e
de governos locais contribuiu, decisivamente, para a ampliação da
prática política de negociação herdada do movimento sindical.
A ampliação política e a maturidade do PT alcançam hoje uma
vitória política sem precedentes
no Brasil, pois todas as tentativas
revolucionárias que estavam apenas na cabeça de idealistas e dos
reformistas de cunho popular acabaram abortadas por golpes militares. Mesmos os comentaristas
dos maiores jornais europeus e
norte-americanos reconhecem
que a vitória de Lula e do PT tem
uma importância política e simbólica transcendental. É uma espécie de "sonho americano" do
homem comum, realizado abaixo
do Equador, que completa finalmente a longa transição democrática com uma verdadeira revolução pacífica. Desta vez, sem ameaça de golpe e sem necessidade de
alteração dos "marcos constitucionais vigentes". Para o povo
brasileiro, significa de fato uma
nova Proclamação da Independência, um alargamento dos
ideais republicanos e uma possibilidade única de um novo "contrato social".
Seja qual for a evolução das lutas de conjuntura, orientadas como serão por uma coordenação
política nacional flexível e lúcida,
como é a do PT, as tendências de
longa duração do nosso capitalismo tardio e autoritário podem finalmente ser alteradas. A história
está aberta, mas a primeira etapa
da luta foi ganha e a democracia
se aprofundou.
Finalmente estamos a ponto de
alcançar uma vitória que significa
a alternância política, uma nova
"ordem competitiva", pela qual
tanto almejava o mestre Florestan
Fernandes.
Finalmente está a ponto de realizar-se o sonho do mestre Furtado
de retomar "A Construção Interrompida": "O ponto de partida de
qualquer novo projeto alternativo
de nação terá que ser inevitavelmente o aumento da participação
e do poder do povo nos centros de
decisão do país".
Maria da Conceição Tavares, 72, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
professora associada da Universidade de
Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
Internet:
www.abordo.com.br/mctavares
E-mail -
mctavares@cdsid.com.br
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