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LUÍS NASSIF
A canção amazônica de Isoca
Que tal mapear a Amazônia e, numa localidade distante do Pará, em Santarém, deparar com uma orquestra filarmônica, com corais e com uma
produção musical de fox, missas
e até óperas?
São inacreditavelmente ricas
as diversas vertentes que compõem a música popular brasileira. As sementes brotam em todos
os lugares, do sertão nordestino
aos pampas, das alterosas aos
campos de Mato Grosso. São
músicas dos mais diversos sotaques, mas que conservam a mesma base.
Uma das regiões mais ricas e
intemporais do Brasil é o Pará.
No Estado é possível encontrar
filhos de Ernesto Nazareth, herdeiros diretos de Waldemar
Henrique, uma produção vasta e
de qualidade herdada dos tempos áureos da borracha, do breve
período em que conviveu com
Carlos Gomes, que tem sido preservada por uma ação extraordinária dos órgãos culturais do
Estado.
O Pará tem sido exportador
permanente de talentos. Tem
uma escola vigorosa de violão,
entre os quais se destacam Nego
Nelson, Paulo André Barata e
Sebastião Tapajós, além de Marcelo Khayat. Na canção brasileira forneceu Jaime Ovalle e Waldemar Henrique. E também Isoca, o músico de Santarém.
O caso de Santarém merece
um registro à parte, o que será
feito a seguir.
Fincada em plena selva amazônica, Santarém é um centro
musical de extraordinária vitalidade. Possui orquestras, corais,
escolas de música, uma ampla
tradição de música sacra e de
dobrados.
Essa tradição musical da cidade começou no início do século
passado com José Agostinho da
Fonseca (1886-1945), nascido em
Belém, que 1906 se estabeleceu
por lá. De profissão, alfaiate, de
coração, músico, ele compôs valsas, "schottischs", quadrilhas,
tangos, dobrados, maxixes, sambas, canções, hinos e marchas,
além de peças para teatro e atos
religiosos. Como todo músico talentoso da época, passou pelo
Rio de Janeiro e chegou a ser terceiro colocado em um concurso
musical promovido por "O Malho", com o maxixe "Jeca Tatu".
Deixou seis filhos para levar
adiante a tradição musical de
Santarém. O mais inspirado deles foi Wilson Dias da Fonseca, o
Isoca -de profissão, bancário
do Banco do Brasil, de coração,
músico. E dos mais prolíficos.
Nascido em 1912, Isoca é autor
de obra vastíssima, algumas
canções clássicas e uma enorme
prole de filhos e netos que prosseguem a tradição local. Suas músicas lembram Waldemar Henrique, os botos e as lendas da selva. Deixou quase 800 composições, passando pelo coral, por
música sacra, valsas, modinhas,
toadas, tangos, canções, músicas
orquestrais, dobrados, sambas,
marchas, fox e boleros, além da
ópera "Vitória Régia, o Amor
Cabano".
A formação de Isoca foi a de
outros mestres da canção brasileira. Passou pelas salas de cinema mudo, tocou nos cines Vitória e Olímpia até 1936. Depois,
inebriou-se com o jazz, dirigindo
a Euterpe Jazz, fundada por seu
pai. Também tentou carreira no
Rio de Janeiro, nas poderosas
emissoras de rádio da época.
Mas a base maior era a da canção brasileira, especificamente a
influência do grande Waldemar
Henrique.
Em 1948 fundou a Sociedade
Musical de Santarém; depois,
uma escola de música e o coral
feminino Coro da Boa Vontade.
A partir dos anos 50 interessou-se pela música sacra, compondo
em parceria com os freis Pedro
Sinzig e Alberto Kruse. Em 1963,
fundou com seu irmão Wilde a
banda de música Professor José
Agostinho, que depois se transformou na Filarmônica de Santarém. Junto com Frei Feliciano
Trigueiro M., então professor do
Ginásio Dom Amando, de Santarém, organizou festivais de arte e orquestras compostas por sacerdotes e músicos locais.
Morreu há dois meses, provavelmente não teve nem um registro sequer nos jornais dos centros maiores. Mas a tradição que
deixou em Santarém, as sementes que plantou e frutificou, são
um caso único na história musical do país.
E-mail - lnassif@uol.com.br
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