São Paulo, domingo, 28 de julho de 2002

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LUÍS NASSIF

A canção amazônica de Isoca

Que tal mapear a Amazônia e, numa localidade distante do Pará, em Santarém, deparar com uma orquestra filarmônica, com corais e com uma produção musical de fox, missas e até óperas?
São inacreditavelmente ricas as diversas vertentes que compõem a música popular brasileira. As sementes brotam em todos os lugares, do sertão nordestino aos pampas, das alterosas aos campos de Mato Grosso. São músicas dos mais diversos sotaques, mas que conservam a mesma base.
Uma das regiões mais ricas e intemporais do Brasil é o Pará. No Estado é possível encontrar filhos de Ernesto Nazareth, herdeiros diretos de Waldemar Henrique, uma produção vasta e de qualidade herdada dos tempos áureos da borracha, do breve período em que conviveu com Carlos Gomes, que tem sido preservada por uma ação extraordinária dos órgãos culturais do Estado.
O Pará tem sido exportador permanente de talentos. Tem uma escola vigorosa de violão, entre os quais se destacam Nego Nelson, Paulo André Barata e Sebastião Tapajós, além de Marcelo Khayat. Na canção brasileira forneceu Jaime Ovalle e Waldemar Henrique. E também Isoca, o músico de Santarém.
O caso de Santarém merece um registro à parte, o que será feito a seguir.
Fincada em plena selva amazônica, Santarém é um centro musical de extraordinária vitalidade. Possui orquestras, corais, escolas de música, uma ampla tradição de música sacra e de dobrados.
Essa tradição musical da cidade começou no início do século passado com José Agostinho da Fonseca (1886-1945), nascido em Belém, que 1906 se estabeleceu por lá. De profissão, alfaiate, de coração, músico, ele compôs valsas, "schottischs", quadrilhas, tangos, dobrados, maxixes, sambas, canções, hinos e marchas, além de peças para teatro e atos religiosos. Como todo músico talentoso da época, passou pelo Rio de Janeiro e chegou a ser terceiro colocado em um concurso musical promovido por "O Malho", com o maxixe "Jeca Tatu".
Deixou seis filhos para levar adiante a tradição musical de Santarém. O mais inspirado deles foi Wilson Dias da Fonseca, o Isoca -de profissão, bancário do Banco do Brasil, de coração, músico. E dos mais prolíficos.
Nascido em 1912, Isoca é autor de obra vastíssima, algumas canções clássicas e uma enorme prole de filhos e netos que prosseguem a tradição local. Suas músicas lembram Waldemar Henrique, os botos e as lendas da selva. Deixou quase 800 composições, passando pelo coral, por música sacra, valsas, modinhas, toadas, tangos, canções, músicas orquestrais, dobrados, sambas, marchas, fox e boleros, além da ópera "Vitória Régia, o Amor Cabano".
A formação de Isoca foi a de outros mestres da canção brasileira. Passou pelas salas de cinema mudo, tocou nos cines Vitória e Olímpia até 1936. Depois, inebriou-se com o jazz, dirigindo a Euterpe Jazz, fundada por seu pai. Também tentou carreira no Rio de Janeiro, nas poderosas emissoras de rádio da época. Mas a base maior era a da canção brasileira, especificamente a influência do grande Waldemar Henrique.
Em 1948 fundou a Sociedade Musical de Santarém; depois, uma escola de música e o coral feminino Coro da Boa Vontade. A partir dos anos 50 interessou-se pela música sacra, compondo em parceria com os freis Pedro Sinzig e Alberto Kruse. Em 1963, fundou com seu irmão Wilde a banda de música Professor José Agostinho, que depois se transformou na Filarmônica de Santarém. Junto com Frei Feliciano Trigueiro M., então professor do Ginásio Dom Amando, de Santarém, organizou festivais de arte e orquestras compostas por sacerdotes e músicos locais.
Morreu há dois meses, provavelmente não teve nem um registro sequer nos jornais dos centros maiores. Mas a tradição que deixou em Santarém, as sementes que plantou e frutificou, são um caso único na história musical do país.

E-mail - lnassif@uol.com.br


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