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OPINIÃO ECONÔMICA
"Estão todos mortos"
RUBENS RICUPERO
"Se o que tens a dizer não é
mais belo que o silêncio,
cala-te." Maria Werneck de Castro não teria nada a temer desse
provérbio, iluminado incontáveis
vezes pelos calígrafos árabes. Os
fragmentos autobiográficos que
seu irmão Moacir organizou para
saírem em breve sob o título de
"No Tempo dos Barões: Esplendor
e Ruína de uma Família Fluminense no Ciclo do Café" vencem
com folga o cotejo com o silêncio.
Não é apenas a beleza pungente
que faz dessas lembranças de menina um grande pequeno livro,
obra-prima que já nasce clássica,
como o diário de Helena Morley,
com o qual foi comparado. É que
essas menos de cem páginas contêm tanta intensidade de vida,
mágoa tão machucada, mas sem
indulgência diante do naufrágio
humano do brilhante e efêmero
capítulo fluminense do Império,
que o silêncio nos privaria de chave essencial para a compreensão
da experiência brasileira.
Eduardo Silva, o historiador de
"Barões e Escravidão", realça, em
prefácio penetrante, que se trata
de documento histórico substancioso e sem par sobre a vida privada de período pouco estudado da
decadência fluminense no pós-Abolição. Maria Werneck nasceu
17 anos depois do fim da escravidão, na fazenda Abahyba, como
se escrevia em 1905, perto de Vassouras. Seus primeiros dez anos,
vividos na fazenda, fornecem o
ângulo de visão de baixo para cima, a partir do qual as crianças
enxergam o mundo dos adultos,
resultando, segundo o prefácio,
em autêntica etnografia da vida
familiar numa fazenda de café, o
espaço secreto do cotidiano íntimo. Tudo isso é verdade e muito
mais. Por exemplo, o prefaciador
valoriza com razão a análise exata do fim de uma estrutura econômico-social, o papel central de
mulheres fortes que se afirmam
na hora da crise, o nível admirável dos estudos que começavam
em casa sob a guia dessas mulheres. Nota também a argúcia com
que se desmascara o preconceito
contra o trabalho, as tenazes sobrevivências da escravidão que,
tal um ar de pestilência, condenava a todos, ex-senhores e antigos
escravos, a análogo destino de
existências truncadas.
Valiosas e indiscutíveis, as qualidades históricas e sociológicas
são, no entanto, como que consequências indiretas, não buscadas
conscientemente. O que desejava
a autora era simplesmente relatar
o que sabia da vida dos pais. A tarefa fora, de início, confiada à irmã mais velha, Elsa, que conhecera mais gente e ouvira mais histórias. Mas um dia Elsa confessou:
"Não posso. É tanta tristeza, que
começo a chorar. Não aguento esse sofrimento, não só o nosso, mas
o dos parentes". O "pathos" do
episódio, um dos primeiros do livro, reaparece em muitas páginas. Veja-se o trecho em que Maria descreve o "enterro de pobre"
de sua avó, a viscondessa de Arcozelo, obrigada a vender a fazenda
principal e morar numa casa de
colono: "Nunca esqueci a cena,
eu, sozinha de luto, (...) vendo
passar o caixãozinho carregado
pelos ex-escravos maltrapilhos,
descalços, de chapéu na mão, um
a um".
A compaixão abraça a todos,
parentes desafortunados, mas
igualmente e sobretudo as vítimas da estrutura de injustiça e
exploração. Não há esnobismo na
reconstituição genealógica, indispensável à narrativa. Muito menos deformação mistificadora e
nostálgica de passado indefensável. Aos poucos, os herdeiros tomam consciência de onde vinha a
chorada riqueza que se perdeu.
Elsa diz que não consegue usar as
jóias da família porque os brilhantes eram "lágrimas de escravos". A lucidez do juízo não permite absolver os antepassados.
Esses, aliás, deixaram confissão
escrita. O bisavô, barão de Pati do
Alferes, escreveu obra prática,
"Memória sobre a fundação de
uma fazenda na província do Rio
de Janeiro" (1847), em que lamenta a destruição da Mata
Atlântica para plantar café: "Ela
mete dó e faz cair o coração aos
pés daqueles que estendem suas
vistas à posteridade e olham para
o futuro que espera seus sucessores". Comenta, em outro ponto,
que a escravidão é "o germe roedor do Império do Brasil", que,
apressa-se em acrescentar, "só o
tempo poderá curar". Sendo os escravos o "nosso melhor capital",
deveria o senhor deixar-lhes um
bocado de terra para plantar,
pois: "Estas suas roças e o produto
que delas tiram fazem-lhes adquirir certo amor ao país, distraí-los um pouco da escravidão e entreter o seu pequeno direito de
propriedade (...) O extremo aperreamento desseca-lhes o coração,
endurece-os e inclina-os para o
mal". À luz de tal crueza no realismo, conclui a bisneta: "Um dia
a festa acabou. Não foi só a Abolição: já antes (...) o ciclo do café estava condenado pelo esgotamento das lavouras, que haviam ocupado o espaço de florestas seculares destruídas. Nós, os descendentes, (...) pagamos o preço do atentado cometido contra a natureza,
à custa da exploração do braço
escravo".
Elegia a um Brasil defunto, testemunho de amor filial, tributo
comovente ao amor conjugal dos
pais, o relato evoca um tempo e
mundo caducos com emoção contida, pudor e concisão. Coerente
com a intenção original, detém-se
na morte do pai, em 1926, quando
a autora tinha pouco mais de 20
anos. Teria de viver ainda 74 e só
principiou a rabiscar esses pedaços de vida após os 90 anos, extinguindo-se em 2000. Marisa e eu a
conhecemos em 1961, quando ela
de pouco havia ultrapassado a
metade do seu caminho. Pioneira
dos tempos heróicos de Brasília,
representante principal da Caixa
Econômica Federal durante a
construção, morou na Cidade Livre, mudando-se mais tarde para
uma das casas da Caixa perto da
Av. W-3, onde a encontramos, recém-casados. Não obstante os 33
anos que nos separavam, ela foi
para nós mãe, irmã mais velha,
amiga, conselheira e, acima de
tudo, mestra de vida, até de receitas tradicionais, de pequenos conselhos práticos que se incorporaram ao nosso cotidiano. Vindos
de São Paulo, de meio majoritariamente italiano, Maria sempre
representou para nós o Brasil no
que tinha de melhor. Não só no
elo de continuidade com um passado prestigioso, mas na retidão
de caráter, na finura de espírito,
na elegância do estilo de vida de
simplicidade e refinamento despojado. Com o coração do lado
certo, o dos movimentos de emancipação social, de rigoroso espírito científico, que se exprimiria na
carreira tardia de desenhista botânica de espécies da flora ameaçadas de extinção, tinha a paixão
do conhecimento e da beleza, que
nos inoculou. Arrastava-nos aos
cursos e projeções da jovem UnB,
de introdução à música e ao cinema, guiava-nos no seu jipe a Pirinópolis, a fazendas setecentistas,
fazia-nos descobrir o esplendor
do cerrado, apresentava-nos a
gente que vivia como ela para a
cultura e a arte.
Junto com Wladimir Murtinho,
desaparecido em dezembro passado e que só viemos depois a encontrar, Maria Werneck de Castro foi a influência mais benfaseja
e transformadora de nossa vida, a
que mais nos ajudou a dar-lhe
sentido, a recriar-nos a nós mesmos. Ler essas páginas foi ouvir
de novo sua voz cristalina, sua
pronúncia precisa, seus juízos
perspicazes. Moacir termina a
apresentação dizendo: "Estão todos mortos". Não para nós, que só
os conhecemos graças a essa voz
querida. E, menos que todos, Maria, de quem beijamos de novo as
mãos, como da última vez, comovidamente abraçando a silhueta
fragilizada pela dor física, certos
em Deus de que nada poderá jamais aniquilar a consciência pessoal e imortal que nos espera na
terceira margem do rio do tempo.
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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