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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Além da Alca
ALOIZIO MERCADANTE
O recente compromisso
conjunto Brasil/EUA de
manter o início de 2005 como data
para a conclusão das negociações
da Alca não significa, de modo algum, que o governo brasileiro tenha abandonado as suas justificadas reservas em relação à proposta
do bloco econômico em seu atual
formato, as quais foram fortalecidas após a oferta norte-americana
divulgada em fevereiro. Com efeito, a oferta do United States Trade
Representative (USTR), além de
manter a proteção aos "setores
sensíveis", introduziu injustificável assimetria nas modalidades de
desoneração tarifária com a nítida intenção de discriminar o Mercosul, particularmente o Brasil, no
processo negociador.
Assim, a proposta norte-americana relativa aos produtos industriais prevê desoneração tarifária
imediata para 91% da pauta importadora provinda dos países do
Caricom, 66% para as nações da
América Central, 61% para os países andinos e apenas 58% para o
Mercosul. No que tange aos produtos agrícolas, a assimetria é ainda mais acentuada, pois a oferta
prevê desoneração tarifária imediata para 85% da pauta de importações norte-americanas
oriunda dos países do Caricom,
65% para a América Central, 68%
para os países andinos e somente
50% para o Mercosul.
Não bastasse tal assimetria das
ofertas, que tende a "bilateralizar"
ou "regionalizar" as negociações
na Alca, o texto do USTR tornou
patente que o governo norte-americano não pretende abrir mão da
proteção aos "setores sensíveis".
De fato, a proposta apresentada
prevê que, para o Mercosul, 35%
dos produtos industrializados e
44% dos produtos agrícolas só terão importação desonerada em
cinco, dez ou mais anos. Ou seja,
em relação a muitos bens, a proteção tarifária e não-tarifária poderá ser mantida indefinidamente.
Tal idéia é condizente com os termos da Trade Promotion Authority (TPA), a qual determina que,
em relação a mais de 300 "produtos sensíveis", o Congresso norte-americano deverá discutir e aprovar a posteriori quaisquer propostas de abertura do mercado. Na
prática, isso significará a manutenção de barreiras em setores "estratégicos". Ressalte-se que muitos
produtos de grande interesse do
Brasil, como suco de laranja, calçados, aço, carnes etc., estão na lista da TPA.
Ademais, a proposta norte-americana não avançou na discussão
de temas que são prioritários para
o Mercosul e para o Brasil, como
os subsídios agrícolas e os direitos
antidumping, que representam as
principais barreiras às nossas exportações. O governo dos EUA
quer que tais assuntos sejam discutidos no âmbito da OMC, onde,
normalmente, os interesses dos
países desenvolvidos tendem a
confluir e confrontar as reivindicações das nações em desenvolvimento. Por outro lado, temas de
grande interesse norte-americano,
como compras governamentais,
serviços e investimentos estão sobejamente contemplados na proposta.
A resposta do Mercosul à proposta assimétrica e protecionista
norte-americana foi racional e estratégica. O novo governo brasileiro, secundado pelos dos demais
países do bloco, acertadamente
não apresentou oferta relativa a
serviços, compras governamentais
e investimentos, optando por remeter a discussão ao seu foro
apropriado: a OMC. No que se refere à desoneração tarifária, a
maior parte (77,74%) da lista de
bens da Nomenclatura Comum
do Mercosul teve proteção assegurada por até dez ou mais anos.
Criou-se, dessa forma, impasse
incontornável nas negociações da
Alca, que não será resolvido simplesmente mediante o compromisso com o prazo de 2005. Tal impasse não interessa ao Brasil porque a
necessidade de superar a vulnerabilidade externa da nossa economia passa necessariamente pela
geração de superávits comerciais
alentados. Assim, a maior aproximação aos EUA, o principal parceiro comercial do Brasil, seria útil
para expandir nossas exportações.
Deve-se ter em mente que o gigantesco mercado norte-americano
compra duas vezes mais do que o
da União Européia e quatro vezes
mais do que o do Japão. Nosso potencial de intercâmbio comercial
ainda é pouco explorado, embora
já tenhamos superávit de cerca de
US$ 5 bilhões. Com o Canadá, por
exemplo, economia de escala semelhante à brasileira, os EUA têm
um comércio de US$ 500 bilhões,
ao passo que, com o Brasil, esse intercâmbio não passou, em 2002,
de US$ 25,5 bilhões. O impasse
também não parece interessar aos
EUA, pois a integração comercial
com o Mercosul, particularmente
com o Brasil, principal economia
da América do Sul, ser-lhes-ia de
grande utilidade, principalmente
na atual conjuntura recessiva. Afinal, todo mundo sabe que a Alca
não existirá, de fato, sem o Brasil.
Como solução para o impasse, o
governo brasileiro, em conjunto
com os governos da Argentina, do
Paraguai e do Uruguai, vem apresentando a proposta de negociar
um acordo de livre comércio Mercosul-EUA, no formato 4+1, a
exemplo do que o governo norte-americano fez recentemente com
o Chile. Em encontro recente que
mantivemos com Robert Zoellick,
representante do USTR, defendemos essa fórmula negociadora
com especial ênfase. Aliás, vimos
defendendo essa proposta há muito tempo, pois temos consciência
de que, em várias áreas, as economias brasileira e norte-americana
são concorrenciais, o que resulta
em inevitáveis atritos, que só podem ser bem equacionados em negociações mais estreitas e focadas.
Embora tal proposta não possa ser
encarada como uma solução milagrosa que teria o condão de desatar instantaneamente o nó górdio do protecionismo norte-americano, ela tem, a nosso ver, vantagens significativas em relação ao
formato tradicional da Alca.
Em primeiro lugar, a fórmula
4+1 confere maior flexibilidade e
agilidade às negociações, já que o
número de países envolvidos é
bem menor e os interesses, nessas
circunstâncias, tendem a confluir
com maior celeridade. Em segundo, o formato sugerido pelo governo brasileiro poderia retirar da
pauta imediata de negociação temas espinhosos relativamente aos
quais Brasil e EUA dificilmente
obterão consenso a curto e médio
prazo, focando as negociações no
acesso aos mercados. Em terceiro,
o esquema 4+1, ao simplificar as
negociações comerciais, tende a
colocar as relações bilaterais Brasil-EUA num patamar mais maduro e pragmático, com evidentes
benefícios para ambos os países.
Por último, a fórmula proposta pelo Brasil fortalece política e diplomaticamente o Mercosul, que é estratégico para a região.
Nesse sentido, o novo governo
brasileiro já vem tomando medidas efetivas para reerguer o Mercosul e assumir, com responsabilidade, a sua liderança na América
do Sul. Essa nova política externa
para o hemisfério está criando as
condições geopolíticas necessárias
para imprimir mudanças qualitativas nas relações bilaterais Brasil/EUA, colocando-as num patamar de maior simetria e reciprocidade. A proposta do 4+1 coaduna-se perfeitamente com essa nova
realidade e, apesar da negativa
inicial do governo norte-americano, é a que reúne as melhores condições para produzir resultados
positivos para todos.
Aloizio Mercadante, 49, é economista e
professor licenciado da PUC e da Unicamp, senador por São Paulo, secretário
de Relações Internacionais do Partido
dos Trabalhadores e líder do governo no
Senado Federal.
E-mail -
mercadante@senador.gov.br
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