|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
O mundo desigual das moedas nacionais
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
O jornal "Valor Econômico", na sua edição de sexta-feira, 27 deste mês, retoma o debate sobre o controle de capitais e,
portanto, sobre a conversibilidade do real. A última receita aviada nos laboratórios da sabedoria
financeira nativa recomenda o
avanço e a consolidação da conversibilidade do real mediante
explícitas garantias legais. Prescreve Domingo Cavallo com taxa
flutuante. Brilhantes em seu "platonismo", meus amigos economistas que advogam tal providência partem de um pressuposto
duvidoso: na assembléia das
moedas nacionais, todos os gatos
são pardos.
A idéia é generosa, mas não leva em conta as "imperfeições"
que perturbam o mundo real: 1) o
sistema monetário global é constituído por uma hierarquia de
moedas, umas mais "líquidas" do
que as outras; 2) em todos os sistemas monetários conhecidos, inclusive no padrão-ouro, a moeda
que denomina e liquida contratos
e transações internacionais é a
moeda do país hegemônico; 3) o
surgimento de "blocos monetários", como a Europa do euro, deve ser tomado como exemplo de
uma decisão política originária
capaz de "criar" um novo ambiente para o desenvolvimento
dos mercados; 4) a idéia de uma
moeda global, emitida por um governo mundial, não parece muito
promissora nos dias de hoje.
Deve-se reconhecer, no entanto,
um mérito na tese da conversibilidade: a própria formulação da
questão exprime as contradições
estruturais do sistema monetário
internacional vigente. Ancorado
na moeda nacional do país hegemônico e combalido por uma babel de regimes cambiais, ele se
mostra incapaz de solver os crônicos desequilíbrios do balanço de
pagamentos. (Piores que isso, só
mesmo as propostas de "ajustamento" elocubradas pelos conservadores, dentro e fora da academia.)
Diante desse quadro, a visão
dominante, amparada na teoria
das vantagens comparativas de
David Ricardo, torce o nariz. No
"modelo" ricardiano, as mercadorias são trocadas em proporção
às "quantidades" de trabalho incorporado e os países se especializam na venda de produtos de menor custo relativo. A moeda é apenas um meio de facilitar o intercâmbio de mercadorias; não há
diferenças de poder financeiro e,
portanto, estão ausentes os desequilíbrios do balanço de pagamentos decorrentes das relações
de débito e crédito entre os países.
Na perspectiva ricardiana, a correção dos desequilíbrios seria automática, respondendo às forças
compensatórias da economia
competitiva: a estrutura "natural" de preços relativos (só alterável a longo prazo mediante o progresso técnico) e as variações na
quantidade de moeda (e nos preços monetários) que resultam das
entradas ou saídas de ouro, conforme a posição deficitária ou superavitária do balanço de pagamentos.
As práticas desenvolvimentistas
nos países periféricos nasceram
da percepção de que as vantagens
competitivas no capitalismo são
"construídas" pela concorrência,
isto é, pelo impulso irrefreável de
ganhar a dianteira mediante o
avanço tecnológico, a concentração e a centralização de capitais.
A construção de vantagens nas
economias em desenvolvimento
exige políticas de Estado capazes
de sustentar taxas elevadas de investimento sobre o PIB e, ao mesmo tempo, contornar as restrições
do balanço de pagamentos mediante a expansão acelerada das
exportações líquidas.
As experiências mais bem-sucedidas parecem indicar que a defesa da taxa de câmbio real, os superávits em conta corrente e a
acumulação de reservas elevadas
tornaram-se cruciais num mundo de grande mobilidade de capitais. As reservas elevadas garantem o atendimento da demanda
por liquidez em moeda forte e, assim, asseguram a estabilidade da
taxa de câmbio, o controle da inflação e a expansão do crédito doméstico.
Essas políticas são chamadas de
neomercantilistas e freqüentemente são acusadas de afetar negativamente o comércio internacional, porque bloqueiam os processos de ajustamento entre deficitários e superavitários. Mas
num ambiente internacional em
que prevalecem a hierarquia de
moedas e assimetrias nos mercados financeiros não restam muitas opções aos países periféricos
que buscam avançar no processo
de desenvolvimento.
Alguns economistas da corrente
dominante acabaram de "descobrir" uma triste e elementar verdade: os países mais débeis estão
maculados pelo "pecado original", isto é, os mercados financeiros globais não absorvem, em escala relevante, dívida denominada em moeda fraca. Nas economias de moeda sem reputação e
"ilíquidas", a conversibilidade
em conta de capital tende a produzir ciclos de euforia e depressão. Valorizações indesejadas da
moeda nacional são seguidas de
desvalorizações abruptas e crises
nos mercados financeiros domésticos.
Nos momentos de contração da
liquidez internacional, ainda que
a adoção de um regime de taxa de
câmbio flutuante seja capaz de
absorver, em parte, os choques, as
autoridades do país de "moeda
fraca" -com "ponto de compra"
imprevisível- serão obrigadas a
usar as reservas ou subir as taxas
de juros para impedir uma derrocada do câmbio. Se as reservas
são escassas, o preço a pagar é o
ajustamento recessivo.
Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor
titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos
do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia
do Estado de São Paulo (governo Quércia).
Texto Anterior: Opinião econômica - Rubens Ricupero: Uma falsa alternativa Próximo Texto: Panorâmica - Energia: Petrobras formaliza contrato para explorar petróleo na Colômbia Índice
|