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OPINIÃO ECONÔMICA
À frente da curva
RUBENS RICUPERO
A história intelectual da
ONU e da Unctad, seu braço
de desenvolvimento, sempre se
caracterizou pelo pioneirismo das
propostas e pela audácia das inovações. As idéias-força que marcaram o progresso social no século 20 só se universalizaram graças
aos tratados e esforços das Nações
Unidas: os direitos humanos, a
promoção da mulher, a proteção
ao ambiente, a luta contra o colonialismo, o combate ao racismo.
Economistas de gênio com o coração do lado certo ajudaram a
ONU a criar a plataforma irrealizada do desenvolvimento.
Basta lembrar, para não encher
a página de lista interminável, os
nomes de Gunnar Myrdal, o economista sueco que foi dos primeiros a receber o Nobel de Economia, e o argentino Raul Prebisch,
criador da Cepal e da Unctad,
que infelizmente nunca receberam dos poderosos o apoio que se
dispensou ao medíocre convencionalismo do desastroso Consenso de Washington.
Esse mesmo empenho em desbravar caminhos estará presente
na grande conferência que a Unctad realizará em São Paulo em
meados de junho. Entre os mais
de 30 eventos que enriquecerão o
conteúdo intelectual dos debates,
três se destacam pelo ineditismo e
pela originalidade: o vínculo entre comércio e pobreza; a relação
entre o comércio e a promoção da
igualdade entre mulheres e homens; e o papel da cultura na
construção de economias dinâmicas e modernas. Esses temas foram selecionados por terem várias características em comum.
A primeira é que todos possuem
dupla natureza, pertencendo, ao
mesmo tempo, à economia e ao
domínio dos valores sociais e humanos. Não podem, assim, admitir tratamento limitado pelo critério estrito da eficiência econômica e do lucro.
A segunda é que não se conhece
o suficiente sobre eles. Faltam
principalmente experiências concretas, fórmulas práticas, que permitam pôr o comércio ao serviço
da eliminação da pobreza, da elevação social da mulher ou do florescimento da cultura.
A terceira é que, apesar de sua
importância crucial, não têm merecido até agora atenção prioritária da maioria dos governos, organizações e pesquisadores.
Tome-se, por exemplo, o caso do
vínculo entre comércio e pobreza.
Muitos acharão óbvio que um
bom desempenho exportador
contribui para gerar empregos de
salários melhores, reduzindo a
pobreza, conforme vem ocorrendo de modo notável na China e
ocorreu no Japão, na Coréia do
Sul, na Malásia. A ligação nada
tem, contudo, de automática ou
direta e pode bem não se manifestar, sempre que for excessiva a desigualdade inicial no ponto de
partida e não se tomem medidas
complementares para desconcentrar e redistribuir a renda.
No Brasil dos anos 70, as exportações, inclusive de manufaturas,
deram um salto triplo e explicam
em parte o surgimento de um setor mais próspero da classe operária, como o dos metalúrgicos do
ABC, categoria da qual saiu o
atual presidente da República. No
entanto, esses efeitos ficaram restritos a poucas áreas e não alteraram, em essência, o perfil social
distorcido do país.
O México, por sua vez, triplicou
as exportações entre 1993 e 2001,
mas continua a ter mais de 50 milhões de pobres em população de
100 milhões. A Unctad divulga
nestes dias estudo dedicado ao comércio e à pobreza, com riqueza
de casos concretos, em particular
nos países mais pobres da África e
do mundo, a fim de aportar à discussão em São Paulo exemplos de
possíveis soluções.
Em outra área vizinha e com
freqüência superposta, a das mulheres, sobretudo as que sustentam sozinhas famílias numerosas
malgrado a exploração de sistemas impiedosos, vamos lançar livro com pesquisas e propostas
acerca do laço entre comércio e
gênero. Na maior parte dos países
subdesenvolvidos, a mulher é esteio central da economia e do comércio. São mulheres que movem
em boa medida a agricultura e o
pequeno comércio em numerosos
países africanos. A mão-de-obra
das zonas de processamento de
exportações na Ásia e no Caribe é
feminina na sua maioria e trabalha em condições iguais ou piores
à da fase da acumulação selvagem do capital do início da Revolução Industrial.
É inegável que a industrialização tem impacto de transformação sociocultural capaz de oferecer vida mais humana a milhões
de mulheres e crianças em países
pobres. É o que está sucedendo em
Bangladesh, onde o emprego nas
fábricas de vestuário para exportação deu às mulheres de sociedade islâmica tradicional oportunidade sem precedentes de autonomia individual e de mudança dos
hábitos de reprodução. Faltam,
entretanto, negociações para
comprometer os países a garantir
às mulheres direitos trabalhistas
mínimos, bem como acesso a crédito, possibilidade de firmar contratos e de fundar pequenas empresas. A ONU deseja pôr em
marcha processo que leve a resultados efetivos para aumentar a
participação feminina nos benefícios do crescimento econômico.
Outro potencial inexplorado
nesse sentido ficou em evidência
durante a visita presidencial à
China. Uma das estrelas da promoção do Brasil foi Lucélia Santos, que até hoje desfruta de grande popularidade com o público
chinês, o qual se comoveu com as
vicissitudes da "Escrava Isaura".
Essa telenovela e outras exportadas com marca brasileira fazem
parte de um dos setores que mais
crescem na economia mundial: o
que é hoje chamado de "indústrias criativas", isto é, as indústrias culturais -cinema, TV, áudio, discos, publicação de música
e livros. A isso deve acrescentar-se
a geração de software, cada vez
mais inseparável da transmissão
de obras culturais.
Em suma, tudo o que depende
de criatividade, inventividade. As
indústrias criativas já representam o primeiro setor econômico
na Inglaterra, onde dão emprego
a 10% da força de trabalho. Estima-se que o valor de mercado das
indústrias criativas no mundo vá
chegar a US$ 1,3 trilhão em 2005
(a partir de US$ 831 bilhões em
2000), uma taxa composta de
crescimento de mais de 7% ao
ano.
Na conferência da Unctad, haverá um painel de alto nível para
examinar como ajudar o Brasil e
os demais a melhorar a competitividade na indústria criativa,
utilizando a diversidade cultural
como força motora do desenvolvimento. Para isso, países modelares nessa área, como a Nova Zelândia, a Inglaterra, o Canadá, e
a Irlanda, apresentarão sua experiência na formulação das políticas públicas e dos incentivos para
a promoção dessas indústrias.
Já no dia 9 de junho, na Oca do
Ibirapuera, dedicaremos um dia
inteiro às "empresas culturais",
das quais nosso país tem na Brazil Connects, co-organizadora do
evento, exemplo de eficiência reconhecido internacionalmente.
No momento em que se debate
entre nós a necessidade de um
projeto de país para vencer a estagnação e a desigualdade, esses
três temas situados à frente da
curva deveriam inspirar alguns
dos traços essenciais de um desenho de Brasil inovador e progressista.
Rubens Ricupero, 67, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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