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ARTIGO
Suspeitas, interesses e as negociações da Alca
CELSO LAFER
ESPECIAL PARA A FOLHA
Não há nada que faça suspeitar
tanto, dizia Francis Bacon, quanto
saber pouco. No caso das negociações da Alca, o pouco saber
tem alimentado desconfianças
quanto à capacidade do Brasil para concluir uma negociação vantajosa. A desconfiança revela-se,
por exemplo, na percepção de que
o Brasil deve evitar negociar com
os EUA, porque nada de bom poderia resultar para a parte mais
fraca em uma relação com uma
economia dez vezes maior.
É interessante que muitos que
vêem na diferença de poder um
obstáculo intransponível nas negociações com os EUA são favoráveis a um acordo com a União
Européia, uma potência econômica comparável. E são os mesmos que defendem que façamos
acordos preferenciais com vizinhos sul-americanos -como a
Colômbia, o Chile e a Bolívia, cujas economias são muitas vezes
menores do que a brasileira. Nossos vizinhos, presume-se, não devem ter o mesmo temor que nós
em relação aos mais fortes.
A verdade é que a disparidade
de poder não é, por si só, um impedimento a relacionamentos
mutuamente vantajosos. Se fosse
assim, não seriam possíveis os negócios entre o pequeno fornecedor e a grande montadora de automóveis, ou entre consumidor e
supermercado, e os fabricantes
prefeririam vender seus produtos
a pequenos varejistas, e não a
compradores atacadistas.
Nossos vizinhos e parceiros latino-americanos têm, sim, interesse no mercado brasileiro e estão
abertos a negociações conosco,
uma oportunidade que não temos
deixado de aproveitar. Daí o recente acordo com o Chile, o acordo que será celebrado com o México na primeira semana de julho,
por ocasião da visita do presidente Fox, e o empenho que vimos
tendo na celebração do acordo
entre o Mercosul e a Comunidade
Andina. Os demais países também anseiam, no entanto, por
acordos com os EUA, e vêem com
alguma incredulidade as manifestações, de certos setores no Brasil,
de desinteresse pelo maior mercado do planeta.
Economia de escala
Uma economia moderna requer escala de produção muito
superior, nos setores mais dinâmicos, à dimensão dos mercados
nacionais, mesmo das maiores
economias. Excluído o México, a
América Latina corresponde
aproximadamente ao tamanho
do mercado brasileiro. Acesso
ampliado a esse mercado não é
suficiente para competirmos em
setores como informática ou eletroeletrônicos, que a Unctad
(Conferência das Nações Unidas
sobre Comércio e Desenvolvimento) tem identificado como vitais para o aumento da participação de um país em desenvolvimento no comércio internacional.
É necessário elevar a competitividade da economia brasileira aos
padrões internacionais, e isso não
poderá ser feito sem escala e sem
liberdade para importar insumos
a preços competitivos. Existe
muito espaço para ganhos de eficiência e competitividade com a
redução das barreiras às importações. O Brasil ainda é um dos países mais fechados do mundo: dos
142 países membros da OMC, menos de um quarto tem grau de
abertura (comércio exterior como proporção do PIB) inferior ao
que o Brasil, e nenhum deles se
destaca pelo nível de renda ou ritmo de crescimento econômico.
Ainda assim, não se pode esquecer que, mesmo limitada, a
abertura comercial no Brasil, como nas demais economias emergentes, foi acompanhada por um
aumento das importações superior ao aumento de nossas exportações. Parcela relevante desse desequilíbrio deve-se a barreiras ao
acesso nos mercados desenvolvidos. Nada mais natural, por conseguinte, do que buscar contrapartidas, e é isso que queremos ao
negociar no hemisfério, com a
União Européia e na OMC.
O que nos interessa é a liberalização do comércio em bases recíprocas. Como disse recentemente
o presidente Fernando Henrique
Cardoso, "sentaremos à mesa
com a confiança de que vamos
reivindicar aquilo que nos dispomos a conceder: acesso a mercados". No ano passado, na Cúpula
de Québec, o presidente já havia
definido nossos objetivos nas negociações: abertura dos mercados, aprimoramento das regras
sobre antidumping, redução de
barreiras não-tarifárias, combate
ao protecionismo sanitário, equilíbrio entre a proteção à propriedade intelectual e a promoção da
capacidade tecnológica, correção
das assimetrias na área agrícola. É
isso que pretendemos, é isso que
buscamos. Uma Alca que não
corresponda a essa visão não seria
chancelada pelo Executivo nem
ratificada pelo Congresso.
O Brasil precisa continuar a importar, mas quer que seus parceiros removam os obstáculos às
suas exportações. É a partir dessas
premissas que se podem entender
questões como a tarifa-base para
as negociações da Alca.
Há uma distinção fundamental
entre as negociações tarifárias que
se conduzem na OMC e as que se
levam a cabo na conformação de
uma área de livre comércio. O objetivo na OMC é a redução progressiva de tarifas, que são então
"consolidadas", ou seja, fixa-se
um teto para as tarifas, que não
poderá ser superado a não ser em
circunstâncias excepcionais. Em
uma zona de livre comércio, não
se trata de estabelecer tarifas máximas, mas sim de eliminá-las no
comércio entre os membros. Nesse tipo de negociação, a tarifa consolidada na OMC não é um recurso de grande valia.
Pode-se ilustrar a diferença, em
termos de tarifa-base, com um
exemplo da dinâmica de negociação de uma área de livre comércio. De maneira geral, os produtos
industriais foram consolidados
pelo Brasil a 35% na OMC. Para
um produto com tarifa aplicada
de 14% e prazo de desgravação de
cinco anos, com a tarifa aplicada
como ponto de partida, haveria
reduções de 2,8% a partir do primeiro ano. Se a tarifa consolidada
fosse a base, o mesmo produto
não teria nenhuma redução tarifária nos primeiros três anos, mas
teria reduções de 7% no quarto e
no quinto ano. O resultado final
seria o mesmo, mas com uma
transição mais abrupta.
Em um processo que deverá levar à eliminação de tarifas, o fundamental é a negociação do cronograma de desgravação. É ele
que oferece a possibilidade de
proteger os produtos que necessitam de prazo mais longo de transição. Em princípio, na Alca haverá quatro categorias de desgravação: imediata, cinco anos, dez
anos e acima de dez anos.
A pertinência dessas considerações é atestada pelo fato de que
não há registro de qualquer zona
de livre comércio constituída a
partir de tarifas consolidadas. Dos
mais de 200 acordos regionais notificados à OMC até hoje, nenhum
utilizou as tarifas consolidadas
como base para a desgravação tarifária. Isto também decorre do
fato de que o artigo 24 do Gatt,
que rege a formação de zonas de
livre comércio, requer que o efeito
de criação de comércio que não
existiria na ausência de preferências seja maior do que o efeito de
desvio de comércio, ou seja, de
deslocamento de fornecedores
extrazona mais eficientes por países membros da zona de livre comércio.
A utilização de uma tarifa próxima à aplicada é, portanto, uma
decorrência da lógica de uma negociação de acordo de livre comércio e não constitui uma concessão antecipada. Essa conclusão
foi confirmada ao cabo de cuidadoso processo de consultas no
âmbito do governo e com o setor
privado, representado pela Coalizão Empresarial Brasileira. Ainda
assim, tivemos o cuidado de preservar margem de manobra para
o próximo governo, ao qual caberá conduzir as negociações a termo. Desse esforço resultou um
cronograma para a próxima fase
da negociação tarifária que deixa
para 2003 as principais decisões.
O Mercosul e a Alca
A tarifa-base para o Mercosul
será a Tarifa Externa Comum, a
ser notificada, como no caso dos
demais países, no segundo semestre deste ano. Obtivemos, no entanto, flexibilidade para a revisão
dessa notificação até 15 de abril do
próximo ano. O processo de apresentação de pedidos e ofertas, por
sua vez, inicia-se em 15 de dezembro deste ano, mas só será efetivamente realizado no decorrer de
2003. São prazos, portanto, plenamente compatíveis com o nosso
calendário eleitoral.
O que as negociações conduzidas até agora fizeram foi lançar as
bases para a conclusão de um
grande projeto, que pode contribuir para consolidar a prosperidade e a paz no hemisfério. O engajamento do Brasil no processo
negociador da Alca influenciou o
que de início se apresentava como
um procedimento de expansão
do Nafta, adaptando-o de forma
compatível com os principais eixos da estratégia comercial brasileira: primeiro, a prioridade do
Mercosul e da dinâmica comercial sul-americana na construção
futura da Alca; segundo, a atenuação do Nafta como eixo de referência e de convergência dos diferentes acordos sub-regionais; terceiro, a preservação da preeminência do sistema multilateral de
comércio. Cabe recordar, nesse
sentido, a importância da Reunião Ministerial de Belo Horizonte (1997), na qual foram estabelecidos parâmetros que norteiam as
negociações até hoje, como o
"single undertaking", ou "empreendimento único", que assegura que as negociações serão
concluídas, avaliadas e, eventualmente, adotadas como um conjunto integrado; o consenso, que
garante que posições legítimas,
mas minoritárias, não sejam descartadas pela vontade da maioria;
e a coexistência com blocos sub-regionais, que preserva a capacidade de negociação conjunta do
Mercosul, aspiração fundamental
da nossa política exterior.
As principais decisões táticas e
estratégicas dentro dessa moldura, no entanto, ficarão a cargo do
próximo governo. Naturalmente,
muito dependerá da efetiva disposição de nossos parceiros para
abrirem seus mercados. Ainda assim, após oito anos de negociações, o governo do presidente
Fernando Henrique Cardoso deixa aberta uma oportunidade histórica, sem nenhuma hipoteca. É
uma opção, não um destino.
Negociações comerciais não são
um jogo de soma zero, em que o
ganho de um é obtido às custas
dos outros. Ou ganham todos, ou
não ganha nenhum. Não são como uma luta de boxe, que termina
com a vitória do mais forte. No
comércio, o que o mais forte consegue é função do que ele está disposto a conceder. É por isso que o
representante comercial dos
EUA, Robert Zoellick, um negociador arguto e experiente, alertou o Congresso de seu país para o
fato de que as restrições à capacidade do Executivo norte-americano para negociar antidumping
comprometeriam as possibilidades de obter vantagens para os
EUA nas negociações na OMC.
O temor de negociar com os
EUA reflete uma visão acanhada,
de quem considera o Brasil um
país pequeno. É fruto de ignorância da própria história de um país
que tem uma política externa essencialmente bem-sucedida na
defesa dos interesses nacionais.
As negociações da Alca não são
fáceis. Ficaram ainda mais difíceis
com a onda protecionista que se
verifica em nossos principais parceiros comerciais, afetando negativamente o clima para todas as
grandes negociações comerciais.
As salvaguardas siderúrgicas e a
edição da "Farm Bill" norte-americana são exemplos de medidas
protecionistas recentes. Mas não é
da natureza da política externa ser
fácil; quando se trata de traduzir
necessidades internas em possibilidades externas, num mundo de
conflitos e tensões, devem-se esperar dificuldades. Dificuldades
que vale a pena enfrentar porque
mesmo um país de escala continental como o Brasil, nas condições atuais da realidade internacional, não pode ficar isolado. Para gerar emprego e renda e diminuir a dependência dos capitais
externos, é imprescindível expandir exportações e, para isso, devemos explorar todas as oportunidades de abertura de mercados.
Identificar oportunidades e
buscar as melhores formas de
adequar eventuais compromissos
de liberalização às necessidades e
interesses dos produtores nacionais são tarefas cada vez mais
complexas. Não se trata mais simplesmente de proteção tarifária na
fronteira, mas de normas internas, como a regulamentação da
prestação de serviços, regulamentos e normas técnicas, medidas
sanitárias e fitossanitárias, subsídios. Não são questões teóricas, e
muito menos ideológicas. Por isso
é indispensável a participação direta de todos os interessados.
Quem negocia pelo Brasil
No âmbito do governo, as principais decisões sobre política comercial são tomadas pela Camex,
órgão colegiado em que têm assento, além do Itamaraty, os ministérios do Desenvolvimento, da
Fazenda, do Planejamento e da
Agricultura e a Casa Civil. A condução das negociações fica a cargo do Itamaraty, cuja tradição e
experiência nessa área remontam
ao tempo do Império. Todas as
negociações internacionais sobre
comércio desde a Segunda Guerra
Mundial foram lideradas pelo Itamaraty, começando com o Gatt,
passando pela Alalc e pela Aladi,
pela Unctad, pelos acordos de
produtos de base e pelo Mercosul,
até chegar à Rodada Uruguai, que
resultou na criação da OMC. O
Itamaraty tem memória institucional e quadros estruturados em
uma carreira de Estado, e por isso
mesmo capazes de assegurar o
profissionalismo na gestão das relações internacionais do Brasil.
Não se trata apenas de uma avaliação pessoal de um acadêmico
com longa experiência empresarial. Trata-se do testemunho de
alguém que, sem ser diplomata de
carreira, foi chanceler em duas
ocasiões, ocupou a pasta do Desenvolvimento, Indústria e Comércio e chefiou a missão do Brasil em Genebra por quatro anos, e
que conhece, assim, o respeito
universal de que gozam os diplomatas brasileiros.
As críticas que têm surgido à
competência negociadora do Itamaraty no período mais recente
podem ser comparadas a um ataque especulativo, em que setores
domésticos, tanto econômicos
quanto políticos, buscam vantagens de curto prazo à custa da depreciação de um ativo que pertence a todos os brasileiros. Os "fundamentos", no entanto, continuam sólidos, e por isso estou certo de que o bom senso voltará a
preponderar no trato da matéria.
O debate não se limita, no entanto, à organização e à distribuição de competências no âmbito
do Executivo. Como chanceler de
um governo democrático, sei que
os temas da política externa são
do interesse de toda a sociedade,
pois envolvem, no caso específico
das grandes negociações comerciais, políticas públicas que têm
efeitos redistributivos e regulatórios. Por esse motivo, o Itamaraty
tem buscado incessantemente fomentar a participação da sociedade civil. Já em 1996 foi criada a Seção Nacional de Coordenação dos
Assuntos Relativos à Alca (Senalca), a qual constitui um espaço de
coordenação de posições governamentais, com a participação
efetiva do setor privado, centrais
sindicais, universidades, organizações não-governamentais e
parlamentares. As mais de 30 reuniões da Senalca já realizadas, a
presença freqüente -minha e de
nossos negociadores- em seminários e debates e o diálogo constante com o Congresso são provas
dessa transparência. Empenhei-me pessoalmente, na Reunião Ministerial de Buenos Aires, de 2001,
para que fosse autorizada a publicação do texto da minuta de acordo da Alca na internet, onde pode
ser consultada por todos.
Essa abertura tem servido como
base de um diálogo inestimável
para a fiel determinação dos interesses brasileiros. O governo já
realizou múltiplos estudos macroeconômicos para estimar o
impacto das negociações comerciais para o Brasil. O Ipea vem desempenhando um papel de proa
nesse esforço. A CNI e a Coalizão
Empresarial Brasileira têm sido
parceiros permanentes no processo de análise e formulação de
posições. A Fiesp realiza estudos
que servirão de plataforma para
investigações mais concretas e
objetivas sobre o potencial e as
necessidades de cada setor. Acadêmicos como o professor Marcos Jank têm aprofundado estudos sobre as barreiras às exportações brasileiras, destacando a importância de levantamentos detalhados dos obstáculos que precisam ser eliminados para que nossos produtores possam efetivamente beneficiar-se dos mercados do hemisfério.
Um debate informado
"As suspeitas que são alimentadas artificialmente, e colocadas
nas cabeças dos homens pelos
contos e sussurros dos outros,
têm ferrões. Elas levam homens
sábios à incerteza e à melancolia",
dizia Bacon, concluindo que o remédio consiste em procurar saber
mais. No caso das negociações da
Alca, não há desculpas para a falta
de informação. O governo está fazendo a sua parte, porque tem
consciência da importância da
transparência para a legitimidade
e para o adequado embasamento
técnico das posições que o Brasil
defende nas negociações. São posições que representam o interesse nacional, e não apenas do atual
governo. E esse interesse não será
promovido com derrotismo nem
com complexo de inferioridade.
Celso Lafer, 60, é ministro das Relações
Exteriores e professor titular da Faculdade de Direito da USP. Foi ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio
(governo FHC) e das Relações Exteriores
(governo Collor). Doutor em ciência política pela Universidade Cornell (EUA), é
autor, entre outros livros, de "Hannah
Arendt: Pensamento, Persuasão e Poder"
(Paz e Terra, 1979), "A Reconstrução dos
Direitos Humanos" (Companhia das Letras, 1988) e "Comércio, Desarmamento,
Direitos Humanos - Reflexões sobre uma
Experiência Diplomática" (Paz e Terra,
1999).
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