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LUÍS NASSIF
Memórias do campeão
Anatoli Karpov não tem
mais o ar quase juvenil
que assombrou o mundo quando surgiu para o xadrez, em
meados dos anos 70. Já chegou
aos 50, parece mais moço e
mantém os traços orientais de
quem nasceu na ex-União Soviética, na fronteira com a
Ásia.
Participei de uma entrevista
com ele, a convite da ESPN.
Faltou tempo para tanta curiosidade. Sua vinda a São Paulo
não atraiu multidões, como
provavelmente ocorreria nos
anos 70, quando conquistou o
título mundial de xadrez, devido à desistência do norte-americano Bobby Fischer de enfrentá-lo.
A lenda Karpov nasceu logo
após a lenda Fischer. O norte-americano conseguiu romper
com uma hegemonia russa que
vinha desde os anos 50, quando
Mikhail Botvinik, o primeiro
campeão mundial do pós-guerra, criou a moderna escola de
xadrez russa.
No início dos anos 70 Fischer
havia irrompido no mundo do
xadrez como um bólido, depois
de firmar fama como menino
prodígio. Arrasou todos os seus
adversários nas eliminatórias,
culminando com a espetacular
vitória sobre o campeão mundial Boris Spassky, em 1972.
Fischer não compareceu à primeira partida do match, na segunda fez um sacrifício incompreensível, que o levou à derrota. Depois, arrasou. Para seus
muitos fãs, as duas primeiras
partidas não passaram de jogadas psicológicas finamente
pensadas.
Na entrevista, Karpov explica que não. Fischer era perfeccionista ao extremo, não podia
admitir erros, e começava cada
match inseguro sobre suas possibilidades. Só ia ganhando segurança no decorrer dos
matchs.
Foi essa a razão que levou
Fischer a não aceitar a disputa
com Karpov, quando este surgiu como o grande vingador
russo. Com 11 anos, aliás, Karpov deixou sua cidade e rumou
para Moscou, para aprender
xadrez com Botvinik. Como
não conhecia bem abertura,
Botvinik não viu futuro nele.
Mudou de opinião um ano depois.
Karpov conta, com prazer,
que, adolescente, ainda venceu
o professor. Na verdade, fez
uma concessão e permitiu a
Botvinik voltar atrás em um
lance errado. Oficialmente, a
partida terminou empatada.
Pelos cânones sagrados do xadrez, perdeu.
E quais as possibilidades de
Karpov se o match com Fischer
tivesse sido realizado? A lenda
sorri e diz que, naquela época,
seria de 55% para Fischer e
45% para ele -pela menor experiência. Alguns anos depois,
quando atingiu o auge, seria
55% para ele e 45% para Fischer. A prova foram os 150 torneios que venceu, a maior série
de qualquer campeão em qualquer tempo.
O Olimpo do xadrez reserva
lugar especial para os grandes
nomes que não chegaram a ser
campeões. Karpov cita entre
eles Rubinstein, Paul Keres, o
imenso Keres que entrevistei
no Interzonal brasileiro do início dos anos 70, David Bronstein e Victor Korchnoi, que derrotou Mequinho em uma semifinal.
Entre todos, a maior tragédia
foi com Bronstein. Nos anos 50,
ele estava à frente de Botvinik,
precisando de uma vitória a
quatro jogos do final para ser
campeão mundial. Perdeu um
jogo ganho porque estourou no
tempo. No início da sua carreira, Karpov indagou o que representava essa perda. Bronstein minimizou. No final da vida, desabafou com o campeão
a perda da oportunidade.
Houve também os táticos geniais, os jogadores que davam
lances atrevidos, sem consistência técnica, mas confiando
em sua capacidade tática superior. Comportavam-se como
Napoleão, diz Karpov, que primeiro entrava na batalha para
depois afinar a tática.
Entre todos, cita o brilho de
Mikhail Tahl, homem de sacrifícios geniais, e também seu ultra-adversário Boris Kasparov.
Na ponta contrária estava Botvinik, racional ao extremo, especialista em identificar as pequenas inconsistências do jogo
adversário até liquidar com
ele.
O xadrez é uma forma de conhecimento acumulado. Presume-se que o enxadrista, hoje,
tenha mais conhecimento do
que há 20, 50 anos. Mas o xadrez também é intuição, criatividade. E o cubano José Raul
Capablanca estaria à altura de
qualquer campeão contemporâneo, diz ele. O mesmo Capablanca de quem Karpov copiou
o estilo limpo, racional, harmonioso como um texto de Italo
Calvino, como uma canção de
Jobim.
E-mail -
Luisnassif@uol.com.br
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