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NEUROCIÊNCIA
Suzana Herculano-Houzel
Sede de vingança
Eu costumo ser bom
público de cinema:
dou um jeito de
gostar de quase
qualquer coisa. Como meu
marido ficou com os olhos
brilhando ao ver o trailer do
novo Batman, lá fomos nós
conferir o "Cavaleiro das
Trevas" (embora meu motivo maior fosse o Michael
Caine, sempre). Mas, em vez
de entusiasmados, saímos do
filme exaustos, arrastando
pelo chão a alma pesada com
tanta crueldade alheia.
Sim, Heath Ledger transcende o extraordinário como
o Coringa. Mas é justamente
tão real em sua interpretação
que, após duas horas sentindo repulsa crescente por
seus ardis para colocar inocentes uns contra os outros
em experimentos sociais sádicos, nós nos descobrimos
torcendo para que o Batman
despachasse o dito-cujo de
encontro à sua morte.
"Matar é errado", diz, no
entanto, a voz da razão, em
algum lugar do nosso córtex
pré-frontal -e no do Batman
também, para misto de decepção e alívio do público. O
justiceiro, afinal, é um homem de bem. Mas, no fundo,
no fundo, fica a sensação de
que uma parte do cérebro da
gente bem que preferiria o
Coringa morto de uma vez e
Gotham livre dele. De onde
vem essa sede secreta de vingança, forte o suficiente para
se dirigir a alguém que só
existe na tela? Por que tememos a morte iminente de
crianças e adultos inocentes,
mesmo fictícios, enquanto
torcemos pela do vilão?
Saí do cinema me lembrando de um estudo feito
em 2004 pelo grupo da neurocientista Tania Singer, no
Reino Unido, que mostrou
que nos afligimos automática e empaticamente com a
dor causada a desconhecidos
que colaboram conosco, ou
que demonstram serem legais: o córtex da ínsula, que
monitora o estado do corpo,
manifesta-se como se a dor
alheia fosse nossa. Se, ao
contrário, vemos sentir dor
alguém que nos traiu, a ínsula não se compadece nem um
pouco. Minha ínsula, portanto, não deve dar a mínima para as dores do Coringa.
Mas o cérebro não pára aí.
Ainda mais reveladora é a
constatação de que o núcleo
acumbente do sistema de recompensa -aquele que nos
faz sentir prazer- é ativado
no cérebro de quem observa
o traidor receber um estímulo doloroso. E, quanto maior
é a sede de vingança, mais
forte é a ativação do acumbente. Torcer pela morte do
Coringa não deve ser, portanto, uma resposta racional
à sua crueldade, e sim um desejo recôndito do cérebro,
que o julga vil, vil, vil.
Se isso é certo ou errado?
Aí é outro assunto...
SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora do livro "Fique de Bem com o Seu Cérebro" (ed.
Sextante) e do site "O Cérebro Nosso de Cada Dia" (www.cerebronosso.bio.br)
suzanahh@folhasp.com.br
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