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"Chineses ainda têm complexo de inferioridade"
DE PEQUIM
Da destruição da competição
durante a Revolução Cultural
comunista até virar a potência
de hoje, os esportes na China
são temas de estudo há mais de
20 anos da antropóloga norte-americana Susan Brownell, ex-atleta que morou em Pequim
nos anos 80.
Ela inclusive integrou equipes chinesas, como atleta "local", quando estudou na Universidade de Pequim.
Autora de três livros sobre
esportes na China, a antropóloga está atualmente morando na
capital chinesa, pesquisando
sobre o impacto dos Jogos
Olímpicos na prática esportiva
no país, na Universidade de Esportes de Pequim.
Susan conversou com a Folha em um bar de Pequim, perto do campus da universidade
-jornalistas estrangeiros são
proibidos de entrar no campus.
(RAUL JUSTE LORES)
ESTRATÉGIA
"Os chineses têm uma estratégia de investir em esportes
que vão se tornar olímpicos. E
ganham medalhas nesses chamados "esportes novos", como
levantamento de peso feminino, salto com vara, taekwondo.
É só analisar os desempenhos
da China em Los Angeles, em
1984, e em Atenas, em 2004.
Vários esportes que não eram
olímpicos em 1984 hoje são dominados pelos atletas chineses.
Eles também focaram em esportes sem tradição local, como
o remo. O esporte é pouco praticado no mundo, então o nível
internacional não é tão alto. É o
oposto do que acontece com o
futebol, onde o nível é altíssimo, então a China não consegue ganhar nada."
SEM MÁGICA
"Não dá simplesmente para
se falar em uma fábrica de medalhas. A China vai bem em
badminton, tiro com arco, tênis
de mesa, onde sempre foi forte,
mas apenas ganhou na natação
quando o doping não era tão
controlado, depois, nunca
mais. Em alguns esportes, não
houve uma explosão."
PODER FEMININO
"Ao contrário do Ocidente,
mídia e investimentos são
igualmente repartidos entre
homens e mulheres na China.
O peso das mulheres é muito
maior aqui do que nos Estados
Unidos, por exemplo. Certamente, essa é a vantagem de
que o esporte seja financiado
pelo Estado, e não pelo patrocínio corporativo, como nos Estados Unidos."
TEM QUE DOER
"Mais do que disciplina, eu
diria que os atletas chineses são
obedientes. Ainda há um clima
semimilitar de treinamentos
rigorosos, algo que também
existia nos EUA nos anos 50.
Na China, ainda vale a máxima
"no pain, no gain" ("sem dor,
sem vitória", em inglês). Hoje
se sabe que a dor não é garantia
de resultados. No esporte de
base, a China ainda está 10, 20
anos atrás dos Estados Unidos
na ciência dos esportes.
Quando o atleta começa, ele
ainda sofre. Mas nos atletas de
elite, certamente já não há muita diferença entre os técnicos
de um lado e de outro.
Hoje há diversos treinadores
estrangeiros comandando as
seleções chinesas. Muitos são
russos e da Europa Oriental,
mesma origem de vários técnicos nos EUA."
PRECONCEITO
"Há uma ausência ainda de
prática de esportes na sociedade do país. Para a medicina tradicional chinesa, esportes vigorosos não são saudáveis, sua-se
muito, há choques, trombadas,
as pessoas se machucam. E,
com a política do filho único, isso piorou. Os pais são superprotetores e, como o sistema de
saúde foi desmantelado, eles
não querem saber de lesões em
seus filhos. Na China, o estudo
é prioridade. Só se o filho não é
bom nos estudos, aí esporte vira uma opção."
COMPLEXO
"Muitos chineses ainda se
vêem com o preconceito ocidental do século 19. Julgam-se
menores, mais fracos, desnutridos, pequenos, há um complexo de inferioridade. É uma
ideologia desatualizada, que o
resto do mundo já deixou para
trás, mas que ainda deixa marcas no país."
URSS X CHINA
"Na União Soviética, sindicatos e empresas estatais tinham
equipe esportivas, patrocinavam os grandes atletas, enquanto na China só as Forças
Armadas, os governos provinciais e as prefeituras é que possuíam times. O esporte para as
massas era mais importante do
que formar atletas de elite."
MAO E OS ESPORTES
"Mao [Tsé-tung, principal líder comunista chinês de 1949 a
1976] dizia que esporte era importante para o fortalecimento
das massas e criticava a cultura
feudal que era contrária à prática do exercício, ao trabalho
manual. Mas, infelizmente, como os esportes ocidentais foram introduzidos por missionários, várias conexões ocidentais foram combatidas na Revolução Cultural. Mas os esportes não morreram, havia times, e muitos jovens enviados
para trabalhar no campo acabavam arrumando um jeito de
escapar entrando em equipes.
Após a abertura, muita gente
ligada ao esporte decidiu recuperar o tempo perdido, provar
para si mesma que não sofreu
por nada. Aí que se deu o início
da escalada esportiva no país."
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