São Paulo, domingo, 06 de julho de 2008

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"Chineses ainda têm complexo de inferioridade"

DE PEQUIM

Da destruição da competição durante a Revolução Cultural comunista até virar a potência de hoje, os esportes na China são temas de estudo há mais de 20 anos da antropóloga norte-americana Susan Brownell, ex-atleta que morou em Pequim nos anos 80.
Ela inclusive integrou equipes chinesas, como atleta "local", quando estudou na Universidade de Pequim.
Autora de três livros sobre esportes na China, a antropóloga está atualmente morando na capital chinesa, pesquisando sobre o impacto dos Jogos Olímpicos na prática esportiva no país, na Universidade de Esportes de Pequim.
Susan conversou com a Folha em um bar de Pequim, perto do campus da universidade -jornalistas estrangeiros são proibidos de entrar no campus. (RAUL JUSTE LORES)


ESTRATÉGIA
"Os chineses têm uma estratégia de investir em esportes que vão se tornar olímpicos. E ganham medalhas nesses chamados "esportes novos", como levantamento de peso feminino, salto com vara, taekwondo. É só analisar os desempenhos da China em Los Angeles, em 1984, e em Atenas, em 2004. Vários esportes que não eram olímpicos em 1984 hoje são dominados pelos atletas chineses. Eles também focaram em esportes sem tradição local, como o remo. O esporte é pouco praticado no mundo, então o nível internacional não é tão alto. É o oposto do que acontece com o futebol, onde o nível é altíssimo, então a China não consegue ganhar nada."

SEM MÁGICA
"Não dá simplesmente para se falar em uma fábrica de medalhas. A China vai bem em badminton, tiro com arco, tênis de mesa, onde sempre foi forte, mas apenas ganhou na natação quando o doping não era tão controlado, depois, nunca mais. Em alguns esportes, não houve uma explosão."

PODER FEMININO
"Ao contrário do Ocidente, mídia e investimentos são igualmente repartidos entre homens e mulheres na China. O peso das mulheres é muito maior aqui do que nos Estados Unidos, por exemplo. Certamente, essa é a vantagem de que o esporte seja financiado pelo Estado, e não pelo patrocínio corporativo, como nos Estados Unidos."

TEM QUE DOER
"Mais do que disciplina, eu diria que os atletas chineses são obedientes. Ainda há um clima semimilitar de treinamentos rigorosos, algo que também existia nos EUA nos anos 50. Na China, ainda vale a máxima "no pain, no gain" ("sem dor, sem vitória", em inglês). Hoje se sabe que a dor não é garantia de resultados. No esporte de base, a China ainda está 10, 20 anos atrás dos Estados Unidos na ciência dos esportes.
Quando o atleta começa, ele ainda sofre. Mas nos atletas de elite, certamente já não há muita diferença entre os técnicos de um lado e de outro.
Hoje há diversos treinadores estrangeiros comandando as seleções chinesas. Muitos são russos e da Europa Oriental, mesma origem de vários técnicos nos EUA."

PRECONCEITO
"Há uma ausência ainda de prática de esportes na sociedade do país. Para a medicina tradicional chinesa, esportes vigorosos não são saudáveis, sua-se muito, há choques, trombadas, as pessoas se machucam. E, com a política do filho único, isso piorou. Os pais são superprotetores e, como o sistema de saúde foi desmantelado, eles não querem saber de lesões em seus filhos. Na China, o estudo é prioridade. Só se o filho não é bom nos estudos, aí esporte vira uma opção."

COMPLEXO
"Muitos chineses ainda se vêem com o preconceito ocidental do século 19. Julgam-se menores, mais fracos, desnutridos, pequenos, há um complexo de inferioridade. É uma ideologia desatualizada, que o resto do mundo já deixou para trás, mas que ainda deixa marcas no país."

URSS X CHINA
"Na União Soviética, sindicatos e empresas estatais tinham equipe esportivas, patrocinavam os grandes atletas, enquanto na China só as Forças Armadas, os governos provinciais e as prefeituras é que possuíam times. O esporte para as massas era mais importante do que formar atletas de elite."

MAO E OS ESPORTES
"Mao [Tsé-tung, principal líder comunista chinês de 1949 a 1976] dizia que esporte era importante para o fortalecimento das massas e criticava a cultura feudal que era contrária à prática do exercício, ao trabalho manual. Mas, infelizmente, como os esportes ocidentais foram introduzidos por missionários, várias conexões ocidentais foram combatidas na Revolução Cultural. Mas os esportes não morreram, havia times, e muitos jovens enviados para trabalhar no campo acabavam arrumando um jeito de escapar entrando em equipes.
Após a abertura, muita gente ligada ao esporte decidiu recuperar o tempo perdido, provar para si mesma que não sofreu por nada. Aí que se deu o início da escalada esportiva no país."


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