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BOSSA NOVA
Brigas, nunca mais
Fica combinado que a bossa nova nasceu a 10 de julho de 1958 com "Chega de Saudade", por João Gilberto, a não ser que se queira recuar a data para 10, 30 ou 100 anos antes
RUY CASTRO
COLUNISTA DA FOLHA
Não, a bossa nova não nasceu
no apartamento de Nara Leão.
A própria Nara nunca se cansou de dizer isso. E estava certa.
Imagine uma expressão musical tão complexa e sofisticada
(que há 50 anos intriga e encanta estudiosos e leigos de cinco
continentes) sendo criada por
meia dúzia de aprendizes no
apartamento de uma adolescente. Nara tinha 14 anos em
1956, quando eles começaram a
se reunir no apartamento em
que ela morava com seus pais,
em Copacabana.
Nem Byron e Shelley podiam
ser tão precoces. Por mais
bronzeados, bonitos e talentosos, garotos como os violonistas Roberto Menescal, Oscar
Castro Neves e Chico Feitosa, o
letrista Ronaldo Bôscoli, o pianista Luiz Carlos Vinhas, o cantor Normando Santos, o flautista Bebeto Castilho e outros ainda teriam de esperar para produzir suas primeiras criações
expressivas. Ou, como diz Carlos Lyra, que também fazia parte da turma, mas já tivera uma
canção gravada por ninguém
menos que Sylvinha Telles,
"nem a Nara nasceu no apartamento da Nara".
Vamos raciocinar. Se fosse
possível identificar o endereço
natal da bossa nova, seria possível também determinar quando ela veio ao mundo. Talvez
por isso, as pessoas vivam querendo saber: "Mas, afinal,
quando começou a bossa nova?". Ninguém pergunta isso
sobre o maxixe, o xaxado ou o
chachachá. Da bossa nova, no
entanto, exige-se o dia e a hora
exatos do seu nascimento, com
certidão passada em cartório.
Essas pessoas ficam surpresas ao ouvir que, provavelmente, a bossa nova não teve um começo e que a data de 10 de julho
de 1958, quando João Gilberto
gravou o single "Chega de Saudade", no estúdio da Odeon, na
Cinelândia, é, de certa forma,
uma convenção, e o mais certo
seria responder que, dependendo do ponto de vista, foram
vários começos. Um deles teria
sido o LP "Canção do Amor Demais", de março daquele mesmo ano, em que Elizeth Cardoso cantava as canções de Antonio Carlos Jobim e Vinicius de
Moraes, mas apenas pelo violão
de João Gilberto em duas faixas, uma delas a mesma "Chega
de Saudade". O violão era bossa
nova, a cantora não era nem
precisava.
Por que não
antes?
Outro começo poderia ter
sido em 1956,
quando Tom e
Vinicius formalizaram sua
parceria numa mesa do bar Vilarino, na Esplanada do Castelo, e partiram para as canções
do musical "Orfeu da Conceição". Recuando um pouco, chegaríamos a 1953, quando
Johnny Alf compôs "Rapaz de
Bem" e começou a mostrá-la
nas boates em que se apresentava no Leme. Ou a 1946, quando Dick Farney aplicou sua
"voz de travesseiro" ao samba-canção "Copacabana", de Braguinha e Alberto Ribeiro. E poder-se-ia voltar ainda mais no
passado, a quase cem anos antes, porque boa parte da música
popular no Brasil, desde Joaquim Callado, Chiquinha Gonzaga, Patápio Silva, Anacleto de
Medeiros, Ernesto Nazareth,
Donga, Pixinguinha, João da
Baiana, Sinhô e seus seguidores, sempre foi "de bossa".
Assim como não teve um começo, sua paternidade também
não pode ser reduzida a um
músico João Gilberto ou a uma
parceria Tom e Vinicius, por
mais seminais que tenham sido
na sua gestação. Seria até uma
injustiça para com dezenas ou
centenas de profissionais, homens e mulheres que, nos pelo
menos dez ou 12 anos anteriores a 1958, buscaram a modernização da música brasileira e
chegaram a ela parcialmente,
contribuindo com novos caminhos, estilos e achados ao mesmo tempo em que davam duro
nas boates, rádios e gravadoras,
trabalhando com os ritmos e
gêneros mais "quadrados" para
pagar o aluguel.
Os antecessores
Alguns desses foram os cantores Dick Farney, Lúcio Alves,
Nora Ney, Dora Lopes, Gilberto
Milfont, Mary Gonçalves, Doris
Monteiro, Dolores Duran, Tito
Madi, Geny Martins, Sylvinha
Telles, Luiz Claudio, Maysa,
Agostinho dos Santos e Miltinho; os conjuntos vocais Anjos
do Inferno, Namorados da Lua,
Os Cariocas, Garotos da Lua, os
Quatro Ases e um Coringa, Os
Namorados e o Trio Irakitan;
os compositores e letristas José
Maria de Abreu, Oscar Belandi,
Janet de Almeida, Geraldo Jacques, Denis Brean, Valzinho,
Newton Mendonça, Billy Blanco, Ismael Netto, Luiz Antonio,
Antonio Maria e o próprio Jobim; os maestros e arranjadores Radamés Gnattali, Guerra
Peixe, Lyrio Panicalli, Leo Peracchi, Lindolpho Gaya, Carlos
Monteiro de Souza e Moacir
Santos; e instrumentistas como
os violonistas Garoto, Luiz
Bonfá, Candinho, Neco,
Waltel Branco e Nanai; os pianistas Vadico, Johnny Alf e Luizinho Eça; os saxofonistas Zé Bodega, Cipó, K-Ximbinho, Juarez Araújo, Jorginho, Casé e Paulo Moura; os trombonistas Astor, Nelsinho e Norato; os acordeonistas Donato (sim, só depois
ele passaria para o
piano) e Chiquinho; o
contrabaixista (futuro organista) Ed Lincoln; o violinista Fafá
Lemos; etc. Muitos outros poderiam ser citados em
todas essas categorias, todos
"bossa nova" à sua maneira, assim como, segundo Ronaldo
Bôscoli, "Ary Barroso, Noel Rosa e Custodio Mesquita também foram "bossa nova" em sua
época".
Se hoje parece estabelecido
que a bossa nova foi uma síntese elaborada por João Gilberto
a partir de inúmeros pequenos
avanços da música brasileira
propostos por todos aqueles
pioneiros, podemos concluir
que, sem eles, não teria havido
a bossa nova. Ou não teria havido a bossa nova como a conhecemos. Porque, com a efervescência musical, mesmo clandestina, do período 1945-1955,
a bossa nova era inevitável.
Aconteceria de qualquer maneira, com João Gilberto ou
com qualquer um deles. E sempre seria uma "bossa nova",
embora não necessariamente a
bossa nova de João Gilberto.
Nesse caso, ela se pareceria
com o músico por meio de
quem viesse. Se fosse por
Johnny Alf, seria talvez mais
jazzística; por João Donato, teria um acento caribenho; por
Newton Mendonça, tenderia
ao experimentalismo; por Jobim, ficaria mais próxima do
samba-canção; e sabe-se lá como seria se tivesse vindo por
um letrista, um conjunto vocal
ou algum instrumentista que
não de violão ou piano.
Na cadência do samba
Para mim, foi uma sorte que
tenha vindo por João Gilberto,
cuja formação se deu pelo samba. Donde, ao ouvir a "sua" bossa nova na batida do violão, entendida imediatamente por Jobim, que passou a compor em
função dela, e por Milton Banana, que lhe seguiu a receita na
bateria, ouvem-se também os
ecos de Mario Reis, Carmen
Miranda, Orlando Silva, Ciro
Monteiro, Leo Vilar, Bororó,
Assis Valente, Zé da Zilda, Haroldo Barbosa, Antonio Almeida, Wilson Batista, Geraldo Pereira, Dorival Caymmi, Lauro
Maia, Marino Pinto, Herivelto
Martins e outros cantores e
compositores que ele admira,
assim como toda uma ilustre linhagem de conjuntos vocais e
músicos brasileiros "de bossa",
de qualquer época.
Então, ficamos combinados,
e brigas, nunca mais: a bossa
nova nasceu no dia 10 de julho
de 1958, quando João Gilberto
gravou "Chega de Saudade". A
não ser que se considere que o
samba-choro "Chega de Saudade", que Tom e Vinicius haviam
composto um ano antes, estava
destinado a ser um clássico da
música brasileira, com ou sem a
bossa nova. E que a primeira
canção estritamente "bossa nova" revolucionária, mas talvez
sem futuro comercial se não
viesse na crista da nova música,
foi "Desafinado", de Tom e
Newton Mendonça, que João
Gilberto gravaria quatro meses
depois, a 10 de novembro.
Mas não faria diferença:
2008 marcaria, de qualquer
maneira, os "50 anos da bossa
nova".
RUY CASTRO é autor de "Chega de Saudade - A
História e as Histórias da Bossa Nova" (Companhia das Letras, 1990), "A Onda que se Ergueu
no Mar - Novos Mergulhos na Bossa Nova"
(Companhia das Letras, 1999) e "Rio Bossa Nova - Um Roteiro Lítero-Musical" (Casa da Palavra, 2006).
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