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Dois minutos, uma saga
Da primeira
gravação não se
esquece; ela suou
para acontecer e
mais ainda para
fazer sucesso
JOSÉ FLÁVIO JÚNIOR
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
A bossa nova, todo mundo sabe, veio do Rio de Janeiro. Um
de seus pais mais ilustres, João
Gilberto, é da Bahia. Mas foi em
São Paulo que o gênero sentiu o
primeiro gostinho do sucesso.
Gravado no Rio entre junho e
julho de 1958, o disco em 78 rotações de João Gilberto que
trazia os dois minutos (1m59s,
para ser exato) de "Chega de
Saudade" de um lado e "Bim
Bom" do outro não chamou a
atenção assim que começou a
ser distribuído pela Odeon.
João ainda não tinha cartaz, e
qualquer lançamento musical
tinha de disputar espaço com
"A Taça do Mundo É Nossa",
trilha da primeira conquista
brasileira de uma Copa.
Como São Paulo era o principal mercado da época, inclusive
com mais lojas de discos que o
Rio, a gravadora decidiu mirar
na cidade. Uma equipe de divulgadores foi destacada para ir
às rádios e aos lojistas mais importantes para mostrar aqueles
dois sambas cantados e executados de maneira diferente, como relata Ruy Castro no livro
"Chega de Saudade".
Álvaro Ramos, gerente de
vendas das Lojas Assumpção
(então a maior cadeia de lojas
de discos e eletrodomésticos),
foi o primeiro grande alvo. Ao
ouvir "Chega de Saudade", ele
teria indagado aos divulgadores: "Por que vocês gravam cantores resfriados?".
De acordo com a lenda, nem
mesmo dentro da filial paulistana da Odeon a interpretação
de João Gilberto agradou logo
de cara. Oswaldo Gurzoni, o gerente de vendas mais influente
da companhia, teria interrompido uma audição do disco, arremessado-o ao chão e exclamado: "Essa é a merda que o
Rio nos manda!". Mas a frase
também é atribuída a Álvaro
Ramos. A única certeza é que a
anedota é boa.
O empresário e produtor de
origem síria André Midani, que
começava a carreira na Odeon
brasileira, diz que ele mesmo
chegou a ouvir absurdos de um
gerente de vendas ao mostrar
"Chega de Saudade". "Sabe o
que o cara me disse? Que aquilo
era música de veado!", recorda.
Zuza Homem de Mello, então colunista do jornal "Folha
da Noite", aponta que muita
gente teve impressão parecida.
"O João Gilberto era considerado um cantor efeminado, assim
como o Mário Reis havia sido
considerado anos antes. Quem
não tinha vozeirão sofria."
Perfeccionismo
A pressão da gravadora para
que o primeiro 78 de João
acontecesse era enorme. Até
porque a gravação não foi das
mais baratas. No estúdio, o
baiano exigiu um microfone
para sua voz e outro para o violão, algo inimaginável para a
época. Também demorou até
se satisfazer com o take definitivo, apontado erros da orquestra que o acompanhava, brigando com técnicos e até com o arranjador, Tom Jobim.
"Naqueles tempos, os artistas gravavam dois ou três takes
e pronto. O João quis gravar
"Chega de Saudade", no mínimo, umas 13 vezes", conta Midani. "Ou seja, ele não só trouxe
uma revolução estética como
tecnológica."
O 78 acabou entrando nas lojas. Adail Lessa, o divulgador
mais empolgado com a música
de João, chegou a levar o artista
para comer nas casas de figurões do comércio e da mídia.
João nem sempre limpava o
prato, mas cativava com seu
comportamento excêntrico.
Nas rádios, o caminho foi facilitado por disc jockeys como
Walter Silva, mais conhecido
como Pica-Pau. No programa
"Pick-up do Pica-Pau", da rádio
Bandeirantes, ele foi um dos
primeiros a executar "Chega de
Saudade" na voz de João. Costumava reservar os programas
de sábado para tocar as novidades que os divulgadores traziam. Num sábado de dezembro de 1958, levaram para ele o
tal 78. "Tomei um susto. Aquilo
me deu um nó, deixou meu ouvido todo enrolado", relata.
Segundo Pica-Pau, depois de
um mês a música já era a mais
tocada em seu programa, de
alegados 22 pontos de ibope. O
disco vendeu 15 mil cópias entre agosto e dezembro, e o LP
atingiu 35 mil nos primeiros
meses de 1959, uma quantidade
enorme para a época.
Armando Pittigliani, que viria a produzir vários discos de
bossa nova, afirma que as rádios de São Paulo sempre foram mais abertas às coisas novas. "O público era mais antenado", acredita.
Para Amilton Godoy, pianista do Zimbo Trio, a bossa encontrou ressonância imediata
por causa do bom momento
que a noite da cidade vivia. "São
Paulo estava revelando uma geração de músicos de muita qualidade. E todos eles tocavam
bossa nova".
Zuza é mais direto: "A bossa
pegou logo em São Paulo por
causa de duas palavras: Johnny
Alf. Antes de o movimento chegar, a gente já assistia ao
Johnny Alf nas boates do centro. Ele preparou nossos ouvidos para o que viria".
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