|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Vinicius, a poesia assobiada
Vinicius tinha o mesmo diálogo com a grande literatura que Tom com a música erudita. Mas também bebia na fonte ainda pura do samba, e venerava igualmente Shakespeare e João da Baiana
JOYCE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Letra de música é uma forma
esquisita de poesia. Pegue um
texto de Drummond, por
exemplo: por mais que se tente,
é quase impossível musicar decentemente aquelas palavras
de pedra. O letrista de música
popular tem de dar nó em pingo d'água para encaixar no tempo exato da melodia a frase que
fará sentido e ainda será boa de
cantar. Pois é preciso que haja
um espaço de conforto para
quem canta. É preciso fazer a
palavra suingar, ter leveza. Na
boca do cantor, a palavra dança.
Mas também tem o peso do
fundo além da forma, pois no
Brasil a música popular é a
grande porta-voz da cultura,
mais do que qualquer outra expressão de arte.
Nesse sentido, uma letra como a de "Chega de Saudade" é
exemplar. Abraços e beijinhos e
carinhos sem ter fim, peixinhos
a nadar no mar, que é pra acabar com esse negócio de viver
longe de mim e pronto, tudo está dito de maneira gostosa e lúdica. Mas o autor dessas palavras é também o poeta das
grandes canções de amores demais: por toda a minha vida, a
cada despedida vou te amar, desesperadamente. E ainda iria,
num futuro próximo, desaguar
na mitologia dos afro-sambas.
Não é pouca coisa.
Durante muito tempo, a obra
de Vinicius de Moraes foi tratada como mobília no universo
da MPB. Sua personalidade
exuberante ajudou a criar a figura folclórica do "Poetinha",
assim mesmo, no diminutivo; a
lenda do poeta-que-viveu-como-poeta, obscurecendo a importância da obra. Mas a verdade é que Vinicius de fato inaugurou a letra de música como
forma poética estabelecida, e
todos os que vieram depois dele
- discípulos diretos, como Chico Buarque- tiveram, a partir
daí, suas canções merecidamente elevadas ao status de
poesia legítima.
Vinicius já era autor reconhecido na cena literária brasileira
quando explodiu como letrista.
O sucesso popular das primeiras parcerias com Tom Jobim,
de luxuosa simplicidade bossanovista, surpreendeu e acendeu
uma luz vermelha em seus pares, como Manuel Bandeira,
que não se encabulou em lhe dizer ao pé do ouvido: "Esse é o
único tipo de sucesso que eu invejo". O sucesso invejável, no
caso, era a música assobiada na
rua, cantada por aí, sem que o
cantante ocasional ligasse o nome à pessoa -o sonho de todo
compositor e, pelo visto, também de alguns poetas.
Vinicius não foi o primeiro letrista brasileiro a escrever de
maneira coloquial na MPB, como equivocadamente se insiste
em dizer. Antes dele, Noel Rosa
e todos os moderníssimos compositores dos anos 30 já escreviam na linguagem esperta das
ruas. Mas, assim como Tom Jobim na música, Vinicius foi a
ponte entre o popular e o erudito, que até então não existia.
Tom tinha formação clássica e
sua obra musical deve tanto a
Debussy, Ravel e Villa-Lobos
quanto a Ary Barroso, Caymmi
e o jazz. Da mesma forma, seu
parceiro Vinicius tinha o mesmo diálogo com a grande literatura que Tom com a música
erudita. Mas também bebia na
fonte ainda pura do samba, e venerava igualmente Shakespeare e João da Baiana.
Poeta e diplomata,
melodista (sim!) e autor
de versos definitivos e
transformadores no
cancioneiro do Brasil -
só no Brasil um Vinicius
de Moraes seria possível.
JOYCE é cantora e compositora
Texto Anterior: Tom, o arquiteto do mínimo Próximo Texto: Newton, o elo perdido Índice
|